São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O fator Lula na aposta Brasil

CANDIDO MENDES

A opinião pública foi advertida repetidamente da brusca queda da popularidade de Lula, vista como o apocalipse anunciado. Para os adversários do governo, não se trata de uma simples oscilação no jogo dos ganhos e perdas de um Executivo ainda no primeiro terço do mandato. É o sinal da chegada ao precipício, talvez sem fundo, de um presidente que manteve por demais as graças populares, à margem de um plano concreto de resultados ou do abrir, de fato, a cortina do espetáculo prometido. Os céticos vêm esfumar-se, afinal, a festa no céu, começada desde as eleições. O trunfo único é a investidura no poder, vivida ineditamente pelo Brasil do outro lado, que entrou no Planalto com o presidente.
Não contabilizamos ainda a consolidação democrática profunda em que se decantou esse sentimento, como uma mudança definitiva na atitude política brasileira. No assegurá-la, Lula ganha um ativo cívico que é só seu. Marca-se por essa distância nítida, que continua, também, na fieira das pesquisas, entre o apoio ao chefe e ao seu governo. Esse capital se traduz numa paciência desse povo à larga, para além da dita opinião pública que faz o país dos marginalizados. Conforma-se com a demora dos êxitos, até com sacrifícios que possa exigir o projeto de melhoria coletiva que Lula não fez até agora. Não recorreu ao mutirão, como permitiria uma política de emprego maciço, num programa de habitação, saneamento, melhoria urbana, num país já que tem 80% de sua população fora da área rural.


A perda dos 70% de aprovação que o presidente manteve no primeiro ano vem de fenômeno que não nasceu de seu governo


A perda dos extraordinários 70% de aprovação que o presidente manteve ao longo do primeiro ano vem de fenômeno que não nasceu de seu governo, mas intrinsecamente das estruturas de poder. A corrupção, que é a sua segunda natureza, ganha, mais uma vez, as manchetes com o caso Waldomiro; põe Lula na defensiva, na contramão do que dele se espera, empurrado num país que não é o seu, mas de que pode se tornar terrivelmente prisioneiro. A questão crítica neste momento é saber o quanto o nível da queda de popularidade atinge o "fator Lula", dado crítico na equação da mudança, irregenerável se atingido, ou capaz de toda recuperação, se vier à boa briga cívica colocar no governo o que investiu na campanha.
Esse impulso original já lhe garantiu a absoluta colegialidade do ministério, em completa delegação aos seus auxiliares, e ampla autonomia conferida a todas as pastas, fossem do PT da fé ou viessem das bases aliadas. Lula não é o presidente carismático que se pretendeu, de saída, Fernando Collor, nem onisciente, à la Geisel, mas quem realizou o impossível para os que esperavam um PT sectário, protagonista de alguma forra, ou da vitória, com o troféu da terra arrasada do feito pelos governos anteriores. Dessa atitude nasceu a absoluta consolidação da plataforma econômica para o começo da diferença, das políticas sociais, e o ganho das maiorias políticas mais amplas para o deslanche das reformas. Mais ainda, e pela aliança com o PMDB contra o PFL poderá rachar a eterna base clientelística da nossa política municipal.
Num governo como o de Lula, não funcionam as receitas conhecidas para recuperar-se de um momento político, como requer o bem-bom do poder-sistema e sua mornidão final. Os tropeços aí estão, sem retoques, somados no que se vê, como a paralisação trombeteada, agora, do Executivo, ou essa acalmia dos ventos da grande transformação. Rixas de ministro, pleitos exaustos pelo aumento de verbas, recurso à bocarra gasta da mordida fiscal.
Nem há, muito menos, como recorrer à autovitimação diante do enorme volante da guinada à frente do homem do Planalto. Sua carta decisiva é a volta ao espírito das caravanas e à peregrinação ao Brasil de fundo, fora da mídia, atento e plantando a esperança virgem. Não é trampa eleitoreira, mas política social, brotada da própria inventiva do presidente, a desembainhar o lance que espera, intacto, o mandato. Esse passo não comporta promessas e escapa do alarido de sempre da opinião pública, que soube dar ao incidente Waldomiro as dimensões que queria para o abate de que necessitava. Este Lula que venha agora a campo antecede até o plantel de realizações que possam irromper em cadeia, na batuta do ministro Patrus. O toque antecede a prenda, no conforto que renova dos brasileiros de fora.
Há um olho-no-olho do presidente que deixa bem o povo mesmo que mal ande o governo. A ponte Lula no Jequitinhonha, agora, só se inaugura, de fato, se o presidente mover na agenda suas esperas, mandado, ou não, o recado de sua impaciência. Do MST, aos sindicatos, ao Brasil menos da fome e cada vez mais da Bolsa-Escola.
Quem teve direito, por uma vez, à esperança selvagem guarda a sua hora. E Lula não entrou ainda para quem conta numa contagem regressiva. Mas os baixos de popularidade, gritados de manchete a manchete, podem ser treslidos. E o que pode valer não é a resposta nova, mas o que quer ver repetido o Brasil cansado, para a permanência do cinismo cívico, e a inércia histórica do país em banho-maria.

Candido Mendes, 75, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "Senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.


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