São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reestruturação da dívida pública deve começar já, neste governo?

NÃO

Tiro no próprio pé

OCTAVIO DE BARROS

Tiro no próprio pé ou suicídio político. É isso que significa qualquer restruturação involuntária da dívida pública no Brasil. A percepção do mercado de risco de "megaswap" à la Cavallo no próximo governo está provocando reações antecipatórias e associações precipitadas do Brasil com a Argentina.
Justo ou não, esse tipo de preocupação dos mercados deveria começar a ser dissipado imediatamente. Ainda que reconheçamos que esta percepção de risco do mercado talvez seja exagerada, consideramos que os candidatos ao governo deveriam ter em mente que qualquer passo mal dado no cumprimento das regras clássicas de mercado na negociação convencional da dívida mobiliária fará o risco Brasil saltar para um patamar entre 2.000 e 2.500 pontos básicos, inviabilizando qualquer possibilidade de crescimento econômico sustentável por pelo menos dois anos.
Nesse cenário, perderíamos dois anos tentando "correr atrás do lucro" para, com muita sorte, depois dos ajustes necessários, voltarmos à estaca zero. É preciso o alerta porque a negligência com o risco-país leva a uma renitente instabilidade macroeconômica, percebida pelos agentes econômicos.
A hipótese, frequentemente ventilada, de que a equipe econômica de um futuro governo não queira pagar o prêmio que o mercado venha a requerer para a rolagem da dívida faz com que surja o pesadelo do "megacanje" (megatroca de dívida), do ministro Cavallo. "Amistosamente", Cavallo forçou o mercado a assinar uma carta de adesão ao alongamento constrangido da dívida, com pesadas perdas para os agentes econômicos financiadores do Estado.
Em que pesem as diferenças óbvias entre Brasil e Argentina, os impactos de uma megatroca de dívida seriam facilmente previsíveis: risco Brasil acima de 2.000 pontos, "downgrading" automático de agências de "rating", virtual fechamento dos mercados externos de crédito, fuga de capitais, forte queda de investimentos diretos, elevada pressão cambial, estouro da relação entre dívida líquida do setor público e o PIB, percepção de deterioração fiscal, pressão inflacionária comprometendo a taxa de câmbio real, frustração nas exportações, demanda por reindexação, juros que não podem cair, crescimento medíocre, espetaculares perdas para a classe média cotista de fundos mútuos e de pensão e, consequentemente, grande frustração política. Lamentavelmente, não é possível atenuar este cenário, cuja probabilidade de ocorrência consideramos bastante remota, mas não nula.
Nesta campanha eleitoral, fala-se muito de renegociação e alongamento da dívida. Mas, por mais generosos que sejamos com a competência da oposição, devemos compreender que é difícil para o mercado aceitar que a equipe econômica de um eventual governo da oposição tenha, pelo menos no primeiro ano, melhores condições de negociação de alongamento e de barateamento da dívida do que a atual equipe econômica, que logrou grandes avanços neste tema nos últimos três anos. Isso suscita dúvidas sobre o que significa "renegociar o alongamento e as condições da dívida pública" no discurso eleitoral.
O alongamento e a melhora das condições de custo da dívida não dependem apenas da vontade dos formuladores da política econômica, mas da confiança no futuro por parte dos agentes financiadores do desenvolvimento. Boas condições para a dívida interna também dependem de superávits primários altos, duradouros e melhores.
Ainda surpreende a satanização e a obsessão por uma ação punitiva aos credores de um setor público que possivelmente continuará deficitário por muitos anos e que requererá financiamento permanente. Trata-se de uma retórica eleitoral extremamente perigosa. Se o financiamento faltar, o ajuste recessivo será ainda mais doloroso.
Entretanto são poucos os que acreditam em "default" voluntário neste terceiro milênio. A classe média é também credora e representa 41,7% do total do financiamento da dívida mobiliária pública. Tecnicamente, qualquer renegociação dessa dívida não teria como poupá-la de perdas consideráveis. Assim, há um certo exagero em relação ao risco de calote, megatroca, "canetada" nos juros ou limitação de recursos para pagamento dos mesmos. Qualquer dessas ações levaria a turbulências macroeconômicas e políticas duradouras.
É possível superar as tensões atuais relativas à dívida interna sem necessidade de artifícios, desde que se mantenha a credibilidade da política macroeconômica, qualquer que seja o governo.
Vamos direto ao ponto: alto risco Brasil combinado com crescimento econômico é uma ficção. Os mais experientes economistas da oposição sabem disso. Qualquer passo em falso dado no início de um novo governo atrasará a retomada da recuperação cíclica iniciada em 1999 por pelo menos mais dois anos. O bom senso sugere que as oportunidades de começar a governar em condições adequadas pela melhora do risco Brasil não devem ser desprezadas. Basta não dar os passos na direção errada.


Octavio de Barros, 45, é economista-chefe do BBV Banco.


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