|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A nova Padaria Espiritual
ARIANO SUASSUNA
No fim do século 19, houve no Ceará
um importante movimento cultural
que, reunindo poetas, romancistas,
músicos e pintores, recebeu o nome
de "Padaria Espiritual". Araripe Júnior, residente no Rio e crítico já então nacionalmente respeitado, escreveu sobre a "Padaria" e as obras de
seus integrantes, entre os quais Manuel de Oliveira Paiva, Adolfo Caminha, Antônio Sales, Sabino Batista e
Rodolfo Teófilo.
Nos dias de hoje, é interessante verificar como o documento que lançou a
"Padaria Espiritual" mostra, em sua
irreverência, curioso parentesco com
o "Manifesto Antropófago", de Oswald de Andrade. Num artigo de 1893,
Araripe Júnior comenta: "Os novos
da minha terra (...) agremiaram-se em
1892 e fundaram uma sociedade a que
deram o nome de Padaria Espiritual".
Explica que o grupo "ergueu o pendão do nacionalismo", o que fez, porém, "sem quebra do culto da arte
universal". Ainda segundo o grande
crítico brasileiro, os "padeiros" eram
"joviais, pregando a alegria e buscando no equilíbrio das faculdades toda
sua força (...). De posse destas boas
disposições físicas, começam os padeiros espirituais a amassar o pão da
literatura; e parece que essa obra de
bom humor não foi improfícua, porque agora verifico que a atividade dos
operários daquele grêmio não se tem
cingido a meras palestras e torneios
poéticos em rodas de calçada. Apareceu a biblioteca da Padaria, que já
conta quatro ou cinco publicações e
que promete outras".
O jornal dos "padeiros" chamava-se, logicamente, "O Pão", e foi
publicado durante cinco meses de
1892, dez de 1895 e três de 1896 (segundo informação de João Pacheco
no "Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira", de Massaud Moisés e
José Paulo Paes).
Pois bem: nesta segunda metade do
século 20, alguns artistas cearenses estão revivendo, em Fortaleza, o movimento da "Padaria Espiritual". Tendo à sua frente dois intelectuais da
melhor categoria, Virgílio e Luciano
Maia, voltaram a editar "O Pão",
que, nessa fase nova, vai mostrando
importância maior do que a de seu
homônimo do século anterior.
Como poeta, Virgílio Maia descobriu a beleza e a força do romanceiro
popular do Nordeste. Conhecendo,
como poucos, a cultura sefardita e ladina (assim como a galega, a catalã e a
portuguesa antiga), pôde recriar tudo
isso em "galopes" e "martelos" que
são, ao mesmo tempo, refinados e
fortes.
Por outro lado, sua mulher, Socorro
Toquato, fez coisa semelhante em relação às cerâmicas e xilogravuras populares brasileiras; e suas porcelanas
são povoadas de onças, touros, corças, lanças, barcos e outros "sinais",
outros signos e emblemas das coisas e
das pessoas. Reunindo seus trabalhos,
fizeram uma bela obra de pintura e
poesia tendo como tema os "Estandartes das Tribos de Israel", entre cujos "martelos" destaco o seguinte:
"É, Rubem, impetuoso feito as águas,
mas também é consolo e aflição. Duro
rubi, magia de mandrágoras no incestuoso leito da emoção, é flecha de Israel que, disparada, rubra se embebe
em rubro coração".
Qualquer pessoa que conheça as trovas do Bandarra e tenha, por elas, a
mesma admiração que tenho, ao ler
esse "martelo-gabinete" de Virgílio
Maia, nota imediatamente como o autor foi fiel ao espírito e à forma da
poesia judaica e portuguesa de tradição messiânica; e como os dois autores dos "Estandartes", lançando mão
de elementos "arcaicos e populares"
da nossa cultura, terminaram, paradoxalmente, fazendo uma arte cifrada
mas de vanguarda.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Ninho de cobras Próximo Texto: Frases
Índice
|