São Paulo, Terça-feira, 15 de Junho de 1999
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A nova Padaria Espiritual

ARIANO SUASSUNA

No fim do século 19, houve no Ceará um importante movimento cultural que, reunindo poetas, romancistas, músicos e pintores, recebeu o nome de "Padaria Espiritual". Araripe Júnior, residente no Rio e crítico já então nacionalmente respeitado, escreveu sobre a "Padaria" e as obras de seus integrantes, entre os quais Manuel de Oliveira Paiva, Adolfo Caminha, Antônio Sales, Sabino Batista e Rodolfo Teófilo.
Nos dias de hoje, é interessante verificar como o documento que lançou a "Padaria Espiritual" mostra, em sua irreverência, curioso parentesco com o "Manifesto Antropófago", de Oswald de Andrade. Num artigo de 1893, Araripe Júnior comenta: "Os novos da minha terra (...) agremiaram-se em 1892 e fundaram uma sociedade a que deram o nome de Padaria Espiritual". Explica que o grupo "ergueu o pendão do nacionalismo", o que fez, porém, "sem quebra do culto da arte universal". Ainda segundo o grande crítico brasileiro, os "padeiros" eram "joviais, pregando a alegria e buscando no equilíbrio das faculdades toda sua força (...). De posse destas boas disposições físicas, começam os padeiros espirituais a amassar o pão da literatura; e parece que essa obra de bom humor não foi improfícua, porque agora verifico que a atividade dos operários daquele grêmio não se tem cingido a meras palestras e torneios poéticos em rodas de calçada. Apareceu a biblioteca da Padaria, que já conta quatro ou cinco publicações e que promete outras".
O jornal dos "padeiros" chamava-se, logicamente, "O Pão", e foi publicado durante cinco meses de 1892, dez de 1895 e três de 1896 (segundo informação de João Pacheco no "Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira", de Massaud Moisés e José Paulo Paes).
Pois bem: nesta segunda metade do século 20, alguns artistas cearenses estão revivendo, em Fortaleza, o movimento da "Padaria Espiritual". Tendo à sua frente dois intelectuais da melhor categoria, Virgílio e Luciano Maia, voltaram a editar "O Pão", que, nessa fase nova, vai mostrando importância maior do que a de seu homônimo do século anterior.
Como poeta, Virgílio Maia descobriu a beleza e a força do romanceiro popular do Nordeste. Conhecendo, como poucos, a cultura sefardita e ladina (assim como a galega, a catalã e a portuguesa antiga), pôde recriar tudo isso em "galopes" e "martelos" que são, ao mesmo tempo, refinados e fortes.
Por outro lado, sua mulher, Socorro Toquato, fez coisa semelhante em relação às cerâmicas e xilogravuras populares brasileiras; e suas porcelanas são povoadas de onças, touros, corças, lanças, barcos e outros "sinais", outros signos e emblemas das coisas e das pessoas. Reunindo seus trabalhos, fizeram uma bela obra de pintura e poesia tendo como tema os "Estandartes das Tribos de Israel", entre cujos "martelos" destaco o seguinte: "É, Rubem, impetuoso feito as águas, mas também é consolo e aflição. Duro rubi, magia de mandrágoras no incestuoso leito da emoção, é flecha de Israel que, disparada, rubra se embebe em rubro coração".
Qualquer pessoa que conheça as trovas do Bandarra e tenha, por elas, a mesma admiração que tenho, ao ler esse "martelo-gabinete" de Virgílio Maia, nota imediatamente como o autor foi fiel ao espírito e à forma da poesia judaica e portuguesa de tradição messiânica; e como os dois autores dos "Estandartes", lançando mão de elementos "arcaicos e populares" da nossa cultura, terminaram, paradoxalmente, fazendo uma arte cifrada mas de vanguarda.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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