São Paulo, sábado, 15 de julho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O combate ao crime organizado requer um endurecimento da legislação penal?

NÃO

Para entender uma falsa associação

KARYNA BATISTA SPOSATO e FERNANDA MATSUDA

A ASSOCIAÇÃO entre a rigidez do sistema penal e a diminuição dos índices de criminalidade não é verdadeira. Iniciativas nessa direção vêm demonstrando que o enrijecimento dos mecanismos formais de controle social pode produzir efeitos contrários ao pretendido. Da experiência internacional, muitos se remetem ao programa "tolerância zero", implementado na cidade de Nova York nos anos 90. Porém, não há elementos que demonstrem a redução dos crimes como tributária dessa política: a violência criminal já vinha apresentando um decréscimo antes de Rudolph Giuliani assumir a prefeitura em 1993, e o declínio dos índices de criminalidade no período pode ser igualmente conferido em outras cidades dos EUA que não seguiram as diretrizes da política nova-iorquina. A influência dessa doutrina, contudo, pode ser facilmente percebida na retórica militar "guerra contra o crime", que, no caso brasileiro, ganha simpatia e adesão em face do uso sensacionalista e irresponsável do discurso da insegurança e da incapacidade do Estado para enfrentar as causas estruturais que alimentam a violência. Os pacotes de endurecimento da legislação penal e as soluções de ocasião são prova disso, e não é de hoje. Nesse contexto, destaque-se a Lei dos Crimes Hediondos, aprovada na década de 90 como resposta a crimes que passaram a vitimar segmentos sociais mais privilegiados. A lógica da severidade da punição levou à incongruente impossibilidade de progressão de regime para os condenados por tais crimes, violando a individualização da pena, princípio da Constituição e da Lei de Execução Penal. A inflexão da legislação vem forjando uma dinâmica que, embora aparentemente paradoxal, tem a finalidade precípua de repressão e neutralização dos criminosos, o que se verifica especialmente na perda da importância da ressocialização como propósito e fundamento da pena. Além de abandonar a ressocialização, a Lei dos Crimes Hediondos não proporcionou os resultados esperados como medida para prevenção do crime. Dados estatísticos atestam que ora os índices de criminalidade se mantiveram estáveis, ora aumentaram após a edição da lei, evidência de que não há relação de causalidade entre uma lei dura e a retração do crime. Por outro lado, não se pode ignorar o expressivo incremento da população carcerária nos anos posteriores à entrada em vigor da lei, agravando os problemas da deficitária estrutura do Estado em matéria de prisões. O ano de 2001 foi marcado por rebeliões cuja organização foi creditada ao PCC. A resposta estatal se limitou à adoção de medidas recrudescedoras do sistema de execução penal, com a implantação do famigerado Regime Disciplinar Diferenciado. O isolamento de supostos líderes e membros da organização criminosa só estimulou o círculo vicioso e a sanha punitiva, sem desmontar a facção, que hoje se mostra fora do controle do Estado. O panorama atual é exemplo por excelência do fracasso das políticas de segurança pública, que têm sido implementadas de maneira atabalhoada e inconseqüente. Compete ao poder público promover soluções que estejam além de arranjos precários e paliativos que se têm mostrado desastrosos, como a legislação penal de emergência. A ameaça à vida dos agentes do sistema penitenciário, o medo que se difunde entre a população e os transtornos que interrompem a rotina de São Paulo aí estão para o comprovar. No mundo todo, registram-se práticas simples que acabam por ser bem-sucedidas na diminuição dos números do crime, como a construção de áreas de lazer e de convivência social, o fomento a atividades esportivas e programas de tratamento e prevenção da drogadição. O combate à criminalidade exige, sim, que o Estado assuma seu papel. Porém, não sob qualquer forma. É premente que, sob a égide de um Estado democrático de Direito e social, o poder público se faça presente não pelo uso do seu aparato repressivo, mas pela condução de políticas públicas que transformem a realidade em que a opção pelo crime encontra terreno fértil dentro e fora das prisões.


KARYNA BATISTA SPOSATO, 31, mestre em direito penal pela USP, é diretora-executiva do Ilanud (Instituto Latino Americano de Política Criminal das Nações Unidas para Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente). FERNANDA MATSUDA, 26, advogada, é pesquisadora do Ilanud.

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