São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Ciro x Lula

Não é demais ressaltar, em eleição tão imprevisível, que os comentários podem refletir o tom da semana, mas falham ao antever o curso final da decisão popular. Tendo em vista o sobe-e-desce nesta campanha, melhor não descartar nenhuma possibilidade, nem a de que o jogo possa tomar outro rumo se a propaganda afinal alavancar o candidato do governo.
Nas condições de hoje, porém, está configurada a polarização entre Lula e Ciro. Embora este mantenha seu nível de radicalização verbal, parece claro que sua base de apoio logístico se encontra cada vez mais no campo da direita organizada. Se for esse o confronto, porém, devemos estar prontos para assistir a mais um paradoxo da política brasileira.
O "normal" seria esperar que o candidato da "esquerda", não o da "direita", fosse o radical. Lula está manietado, no entanto, por dois fatores. O primeiro é a própria evolução do PT rumo à social-democracia, acentuada nesta fase por uma política já abertamente oportunista, mercê da qual o partido entra para o "establishment" à custa de sua identidade original.
O outro fator a conter o petista num figurino terno-e-gravata é a dinâmica da crise, que vem exigindo crescentes compromissos verbais e já obrigou seu partido a substituir os pontos essenciais da plataforma de governo em menos de um ano. Tais atitudes são, para Lula, o único e precário antídoto contra o terrorismo eleitoral a que o passado do PT o torna sujeito.
O postulante da esquerda se comporta como um escorregadio político convencional, ao passo que seu oponente parece quase um incendiário. Ponha-se a candidatura Ciro no lugar em que se quiser no espectro político, o fato é que temos uma longa tradição de radicalismo retórico e messianismo eleitoral suprapartidário, "renovador", moralizante.
Se o corte do segundo turno for esse, haverá três níveis de contraponto, além de esquerda e direita. Cresce o sentimento de que um eventual governo Lula seria mais previsível, por ser mais orgânico: trata-se de um partido político de fato, fruto de um movimento social que se sedimenta há décadas e cuja trajetória para o centro parece cada vez mais nítida.
Deverá haver outro corte, este de natureza geográfica, pois parte do que existe de "paulista" no tucanato vai se incorporar, caso se mantenha o quadro atual, ao PT. De seu lado, a candidatura Ciro já é uma ampla confederação de elites regionais (emergentes, para usar termo simpático) e dissidências partidárias (fisiológicas, para usar termo mais severo).
Reflexo dessas cisões, o próprio PSDB parece estar na iminência de um racha, sintoma do grau de esfacelamento, mais uma vez, do sistema partidário. Não é à toa que Ciro acusa a máquina do governo de ser "o dragão da maldade", reservando-se, por exclusão, o outro termo -"o santo guerreiro"- do título do filme de Glauber Rocha.
Ele reencarna o fenômeno do reformador intransigente e solitário, papel criado por Jânio antes de ter sido utilizado por Collor. Seu apelo sobre um eleitorado apaixonável, cético em relação a estruturas institucionais, é enorme. Resta saber o quanto o desenvolvimento da nossa cultura política já terá reduzido esse fenômeno a suas formas menos instáveis.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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