São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Crise cambial e ciência

HERNAN CHAIMOVICH

O futuro da ciência brasileira depende das decisões a serem tomadas pela Fapesp para enfrentar a presente crise cambial. Boa parte do desenvolvimento da capacidade de produção de ciência no Brasil na última década pode ser atribuída a ação da Fapesp.
Os pesquisadores do Estado de São Paulo, graças a uma política de governo que manteve o investimento no sistema de universidades públicas e institutos de pesquisa,e graças às políticas de apoio da Fapesp, construíram um sistema de ciência competitiva, que hoje começa a extravasar o ambiente acadêmico e criar reflexos na produção de bens e serviços.
O cerne do sistema é a regularidade de investimentos, que permite traçar estratégias de longo prazo e, assim, atacar problemas científicos substantivos que não são resolvidos num instante. A escala de tempo de um sistema de ciência é longa, é medida em décadas. A inovação se faz na empresa e depende de conhecimento e pessoal bem formado. A interação entre a academia e o setor produtivo é uma prática que se amplia no Brasil de hoje.
O atual acidente de percurso, cujas causas são complexas e pouco têm a ver com o Brasil produtivo, faz com que o risco Brasil atinja valores absurdos e o preço do dólar reflita tão somente a falta de crédito internacional, os medos dos temerosos e as ganâncias dos que cultuam os deuses do lucro. Esse acidente de percurso pode fazer com que a Fapesp perca qualquer possibilidade de manter, ao mesmo tempo, a capacidade de financiar as bolsas que construíram o sistema de ciência de pós-graduação no Estado, de São Paulo, manter a regularidade dos investimentos e continuar a financiar projetos de qualidade.
O orçamento da Fapesp depende de um Estado onde os impostos se pagam em reais e de rendimentos de patrimônio brasileiro investido no Brasil. Os contratos de pesquisa, por outro lado, são compostos em parte por reais e em parte por moeda estrangeira.
A porção em moeda estrangeira permite manter o estoque de reagentes necessários para realizar experimentos, manter acesso à informação através de livros, revistas e meios eletrônicos, comprar equipamentos, manter o contato internacional entre pesquisadores. Com um orçamento em reais e uma parte dos compromissos em dólar, não há planejamento que resista a uma desvalorização de 50% em seis meses.


A interação entre a academia e o setor produtivo é uma prática que se amplia no Brasil de hoje


A Fapesp, bem como outras organizações brasileiras, terá que mudar emergencialmente para sobreviver e, ao fazê-lo, garantir o futuro do imenso investimento feito pela sociedade paulista para construir um sistema ímpar de ciência e tecnologia. Como parte interessada, sendo coordenador de um projeto temático de pesquisa, não posso me furtar a propor idéias que podem viabilizar essa sobrevivência.
Dentre as medidas emergenciais possíveis, destaco algumas. Vale distinguir, destarte, medidas que poderiam ser aplicadas a contratos em andamento daquelas que se referem a novos projetos. É essencial garantir as bolsas existentes, mas a importação de equipamentos pode ser reprogramada. É duro, mas possível, exigir dos pesquisadores priorizar e reprogramar as compras de material de consumo no estrangeiro. Creio também que, salvo as programadas, viagens terão que ser revistas.
A Fapesp vem financiando uma parcela dos projetos apresentados que em muito excede as percentagens de financiamento de entidades de fomento à pesquisa de países desenvolvidos. Esta atitude permitiu a construção de um sistema ímpar, diferenciado e extenso de pesquisa fundamental e aplicada no Estado de São Paulo.
Num momento de crise, o patamar pode ser elevado para, durante um tempo, aumentar a exigência de excelência para projetos aprovados. Uma política dessas é emergencial e não pode ser mantida, sob pena de congelar um sistema antes que ele atinja a maturidade.
Se todas essas medidas forem tomadas de forma transparente, por duras que possam parecer, os cientistas paulistas estarão contribuindo para a manutenção de uma das instituições de apóio à pesquisa de mais prestígio no mundo.
A Fapesp é só uma pequena parte do Brasil que sofre com a crise cambial. Quiçá a comunidade que dela depende possa dar um exemplo de maturidade coletiva que mantenha tanto a instituição quanto a relação dela com os pesquisadores. O aumento da colaboração, o compartilhamento de informação, reagentes e equipamento podem ser ferramentas críticas para ultrapassar mais esta crise sem afetar demasiadamente a produção de conhecimento e a formação de pessoal.
Esse pode ser um exemplo para outros brasileiros.


Hernan Chaimovich, 63, é diretor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Foi bolsista da Fapesp.



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