São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Crédito, a moeda que interessa

DOMÉRIO NASSAR DE OLIVEIRA

Falta ao Brasil uma política adequada, que regule a liberação da energia interna a seu próprio desenvolvimento: a emissão equilibrada de créditos, vinculados à geração de produto.
O crédito tornou-se a forma moderna de ser da moeda. Na verdade, é de fato emitido pelos bancos para só depois ser intermediado. Sua evolução histórica, até se transformar em moeda de plena aceitação, sempre se deu sob a tensão de dois determinantes opostos. Por um lado, era demandado pelos menos providos, que dele precisavam para mobilizar fatores de produção. Por outro, tinha sua oferta contida pela influência daqueles que, já o tendo acumulado, posicionavam-se pela restrição à ampliação das emissões para prevenir desvalorização que comprometesse sua credibilidade.
Expressão da luta entre essas forças contrárias, boa parte do pensamento econômico se moldou ora privilegiando a extensão do gasto financiado por crédito, para ocupar fatores de produção e insuflar demanda, ora entronizando a disciplina da poupança antes do empréstimo, para garantir o valor dos créditos já existentes.
Sem balancear importância no atendimento simultâneo desses dois condicionantes e sem, portanto, articular gestão de sua expansão que tivesse sintonia mais fina para cumprir maior crescimento sem sacrifício da estabilidade, a teimosia em atender sectariamente a uma ou outra das correntes de pensamento -e de interesses- quase sempre se esgotou pelo acúmulo de mazelas e inconsistências.
No Brasil de hoje não é diferente. Após anos de restrição à emissão de crédito, nossa economia vive mais uma das encruzilhadas que podem reverter o paradigma que a norteou na última década. O ideário liberalizante, afinado com o ganho sem risco ao sistema financeiro, extremou suas contradições transformando o próprio Tesouro Nacional em reserva de mercado ao lucro bancário. A alta da taxa de juros mantida por essa ou aquela razão, mas sempre arbitrada pelo Copom, revelou-se a pior intervenção do Estado na economia. Contraiu e concentrou a moeda-crédito a ponto de expor o país ao grave risco de uma espiral depressiva que pode comprometer as próprias finanças públicas.
Apesar do sucesso estabilizador, essa política já se teria desmistificado, não fosse a aparente racionalidade das idéias recrutadas para guarda de seus praticantes. "Como crescer sem poupança interna? Que fazer se não temos dinheiro, maiores sobras no orçamento fiscal? Como evoluir se a poupança externa encolhe? Se fosse fácil, por que resistiríamos em relançar o crescimento? O que nos falta é maior escolaridade..."


Nossa economia vive mais uma das encruzilhadas que podem reverter o paradigma que a norteou na última década


Quando sobram universitários desempregados, quando sobram recursos naturais e tecnológicos aplicáveis ao agronegócio e à redefinição de um padrão energético voltado à biomassa, para citarmos setores em que podemos ser eternos campeões de competitividade, talvez o que nos falte mesmo seja o discernimento de que a existência de moeda nunca precedeu a ação e o pensamento humanos.
Longe da acomodação amparada pela mão visível dos "mercados", o desafio de qualquer equipe econômica deveria ser fazer fluir novas emissões de crédito direcionadas à produção, comercialização e consumo de cadeias competitivamente sustentáveis, ampliadoras do emprego e do saldo comercial externo.
Se é duvidosa a eficácia do gasto público e arriscado promover baixa mais acentuada dos juros em geral, que se procure induzir o sistema bancário a emitir empréstimos setoriais, garantindo-se menor taxa de juros e aval para que se efetivem as contratações almejadas. Que se amplie vigorosamente o expediente da equalização de taxas, em que o governo paga parte das mesmas, com sucesso provado no Proex e no Plano Anual de Safra.
Se faltam garantias, que se ativem fundos de aval. Se faltam recursos orçamentários para equalização, que sejam emitidos a descoberto pelo Tesouro. Afinal, dirigidos a cadeias produtivas através do crivo de bancos que assumiriam o risco sobre o principal e parte dos juros, por que imaginar que esses adiantamentos não se repagariam, esterilizando-se em inflação? Se, ainda assim, houver necessidade de coibir preços exacerbados, por que não inibir a expansão de crédito novo aos setores que adotam preços altos?
Quem sabe assim redescobríssemos o Brasil, tão depreciado atualmente. Sob gestão intersetorial, com sintonia mais fina, maior volume de créditos emitidos seletivamente promoveriam maior volume da moeda nascente na própria atividade econômica, a ser induzida sob o filtro microeconômico da análise bancária. Moeda, portanto, com alta probabilidade de ganhar lastro em produto.
Por aí poderíamos redescobrir que superávits fiscais, insustentáveis por taxação crescente, adviriam consistentemente com a natural extensão da base de arrecadação. Quem sabe entenderíamos então que poupança e investimento, tidos como pré-condicionantes do crescimento econômico, são, na verdade, apenas derivações do estoque de crédito existente, da moeda que interessa e do consumo que movimentam.
Ou alguém duvida que o lucro aplicado no próprio investimento, bem como a remuneração dos demais fatores produtivos empregados por qualquer empresário, depende do consumo dirigido aos bens que produz?


Domério Nassar de Oliveira, economista, é diretor financeiro da Prodam (Companhia de Processamento de Dados do Município de São Paulo).



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