São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Chutando a escada

JOSÉ SERRA

O controle da televisão foi uma das questões mais discutidas durante a primeira campanha eleitoral para o Parlamento polonês na qual concorreram os candidatos do movimento Solidariedade. O regime comunista desmoronava. Graças à indiscrição de um veterano membro do partido, soube-se que os dirigentes, antecipando a vitória da oposição, temiam o poder da televisão livre do controle do Estado a ponto de um deles, em uma reunião, ter feito um desabafo notável: "Nós lhes daremos a tropa de choque, antes de dar-lhes a televisão". Um opositor deu-lhe toda a razão: "Eu preferia ficar com a televisão".
Esse episódio, contado por Christopher Garton Ash em seu livro "Nós, o Povo", no qual narra a revolução de 1989 em Budapeste, Varsóvia, Berlim e Praga, reflete um fenômeno que começou no século 20 e que tem se aprofundado. Para capturar corações e mentes, nos tempos atuais, mais vale controlar a mídia, em particular, e a produção cultural, em geral, do que dispor da força bruta. Na Europa do final do século 20, todas as revoluções foram "telerrevoluções". Imprensa livre e produção cultural independente de "orientações" superiores sempre causaram, no mínimo, desconforto aos governantes. Contribuíram até para derrubar muitos deles, quando desonraram seus compromissos constitucionais. Se ocorresse o contrário, se a mídia e as manifestações culturais proporcionassem conforto aos governantes, não estariam cumprindo seu papel, seja por submissão voluntária, seja por imposição de regimes ou de dirigentes autoritários.
Defender as liberdades, os valores da democracia e os princípios republicanos é mais fácil quando não se tem poder para recortá-los, subvertê-los ou cerceá-los. O duro teste, a hora da verdade, porém, chega junto com o poder. É o exercício diário do poder, com todas as suas agruras, que separa o governante genuinamente comprometido com a democracia daquele que apenas se valeu das liberdades e do regime democrático para chegar lá. E que, uma vez lá, cede à tentação de recolher a escada que permitiu sua ascensão, para assim impedir que outros a usem e se perpetuar no poder.
Também é mais fácil escolher um lado e travar o bom combate quando se está diante de um regime autoritário ou de uma ditadura mais ou menos escancarada. Difícil é identificar o lado correto e resistir quando o impulso liberticida não se mostra por inteiro e à luz do dia, quando ataca sorrateiro, dissimulado, quase invisível e, não raro, usando a máscara do idealismo. Nesse caso, é conhecido o alerta de Bertrand Russell, para quem "muitas vezes o idealismo não é outra coisa senão um disfarce para o ódio ou para a sede de poder".
A história está repleta de exemplos. Surtos autoritários não contidos a tempo, como o macarthismo, por exemplo, podem prosperar até nas mais sólidas democracias. Imagine o potencial de dano em democracias que nem sequer atingiram ainda a maioridade...


Para capturar corações e mentes, mais vale controlar a mídia e a produção cultural do que dispor da força bruta
Intimidar o Judiciário, desidratar o Ministério Público, impor contrapartidas "sociais" e dirigismo à produção cultural, criar autarquias dedicadas a vigiar e punir os produtores de informações, expulsar jornalistas, insurgir-se contra a exposição do contraditório na mídia, aparelhar o Estado, silenciar os servidores públicos, recortar direitos e garantias individuais em nome de um suposto interesse coletivo, quebrar sigilos assegurados pela Constituição -este é o longo e indigesto cardápio apresentado pelo governo do PT à sociedade. Esse cardápio e cada um dos seus pratos devem ser rejeitados com veemência.
Orientar, disciplinar, fiscalizar, punir não parecem verbos próprios para regular a relação de um Estado democrático com a mídia e a cultura. Prestam-se mais a uma escalada autoritária, pela qual o governante de turno pode tentar impor a sua visão de mundo como sendo a linha justa na busca do bem comum. "En este mundo traidor", dizia o poeta, "nada es verdad ni es mentira. Todo depende del color del cristal con que se mira." Escolher a cor do cristal e pretender que toda a sociedade veja a realidade através dela expressa inequívoca intolerância à diversidade de pensamentos e opiniões, à crítica e à contestação. Para quem está na vida pública, é renegar a obrigação de se explicar e de prestar contas à sociedade por seus atos e omissões.
As tentativas recorrentes do petismo oficial de ditar novos catecismos que proclamam verdades, disciplinam as manifestações culturais e a difusão de informações e silenciam vozes incômodas são inspiradas também por um certo sentido de "revelação" quase teológico. O efeito, contudo, pode ser o contrário do que se alega buscar. "Não é possível libertar nenhuma classe começando, em primeiro lugar, por negar-lhe alguma coisa", lembrou Heinrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura, insurgindo-se contra o maniqueísmo nas artes.
Aqueles que exercem o poder, principalmente quando chegam lá graças à alternância que só a democracia assegura, deveriam refletir sobre as lições da história recente. Ela registra a surpreendente transição pacífica verificada em todo o Leste Europeu, com a única exceção da Romênia, no final dos anos 80. Em uma frase, Adam Michnik, um dos líderes do Solidariedade, explicou a maturidade política demonstrada pelos novos donos do poder: "A história tinha lhes ensinado que aqueles que começam atacando bastilhas acabam construindo as suas próprias". Para uso alheio, desde logo.

José Serra, 62, economista, é o candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique).


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