São Paulo, terça-feira, 15 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A crise dois mísseis

SÉRGIO DANESE

A crise dos mísseis de Cuba faz 40 anos. Marco da história contemporânea e da Guerra Fria, ela é muito mais do que um fato histórico para quem a vê com olhos de hoje: é uma lição de poder e diplomacia e um convite à reflexão, num mundo em que a boa diplomacia continua a ser fator crucial de estabilidade político-estratégica e econômica global.
Em 13 dias -da manhã de 16 à manhã de 29 de outubro de 1962-, passou-se da estupefação da prova fotográfica sobre a dissimulada presença dos mísseis em rápida montagem na ilha (após reiteradas promessas soviéticas de que as remessas para Cuba se limitavam a armas defensivas convencionais) a uma importante acomodação entre as superpotências, então há década e meia engajadas em acirrada disputa.
Para essa acomodação, depois da virulenta confrontação inicial, as duas partes souberam exercer contenção e prudência, sem deixar de defender de maneira determinada os seus interesses, preparadas para recorrer a uma retaliação suicida com armas nucleares, mas prontas também a negociar e eliminar o que imediatamente perceberam como uma ameaça à sua própria sobrevivência, uma guerra sem possibilidade de vencedores. Resumida, a crise dos mísseis foi um ato de força e dissimulação da antiga URSS, que, ao estacionar em Cuba mísseis de alcance médio e intermediário e também armas nucleares táticas, pretendeu, soube-se depois, um ou mais objetivos centrais:
Consolidar o seu compromisso de proteção da ilha, já passada ao campo soviético e pouco antes submetida à invasão da baía dos Porcos (março de 1961); aumentar seu poder de barganha para tratar de outras questões espinhosas da agenda entre as superpotências (Berlim, os mísseis da Otan na Turquia e na Itália); testar a determinação norte-americana e reforçar o seu sistema de mísseis nucleares, inferior ao dos EUA (embora estes não o soubessem então).
E foi um ato de força e dissuasão dos EUA, que tardiamente acordaram para a realidade de mísseis nucleares a 150 km da costa da Flórida, capazes de atingir praticamente todo o território continental dos EUA e até a altura de Lima e Belém na América Latina.
Para os EUA, tratava-se, às vésperas de uma importante eleição legislativa, de desarmar uma bomba de tempo política e estratégica, destinada quase certamente a provocar um grave dano -a criação do fato consumado dos mísseis nucleares a escassos minutos de Washington e a consequente humilhação política diante da URSS, com graves implicações para a equação do poder global dos EUA, ou, alternativamente, o início de um conflito que escaparia de controle, em instantes, para assumir proporções bíblicas.


Diplomacia não significa ceder ante o poder ou ante a ameaça da força, significa canalizar o poder e a força


Entre o primeiro e o 13º dia, o mundo acompanhou aterrorizado as idas e vindas da diplomacia e dos preparativos militares, as recriminações recíprocas, os blefes, as sutilezas dos gestos medidos, a busca de apoio e legitimidade por cada parte, os atos conciliatórios de cada governo e as bravatas e exasperações dos "falcões" que, de um e outro lado, preconizavam a intimidação militar e a reação armada como única forma de deter a outra parte. E assistiu a um verdadeiro triunfo da diplomacia, ótica sob a qual o episódio histórico assume toda a sua significação como fonte de sabedoria, sem dúvida, mas também de inspiração para os dias que correm.
Muito se dirá sobre a crise dos mísseis neste seu 40º aniversário, e é útil que assim seja. Que evoquem a sua cronologia, as imagens de terror cidadão daqueles dias e a fórmula original da "quarentena" imposta a Cuba, como forma de testar a decisão soviética, enquanto avançavam as negociações. Que se enalteça a liderança pessoal que Kennedy e Krushev exerceram em seus países, cada qual a seu modo. Que mostrem as imagens do engano soviético flagrado e do aparato de guerra que se montou como reação, enquanto se dava uma chance à diplomacia, que teve ali alguns dos seus melhores momentos. Que se recordem os perigos em que o mundo vivia sob o chamado equilíbrio do terror, posto a dura prova e prestes a se romper naquele episódio.
E que se valorize esse trecho da história como parte de um passado suficientemente próximo, do qual se retiram ensinamentos que nunca será demais repetir, pois sua aplicação é universal. Lembremos dois deles, pela atualidade:
1) Uma superpotência, por mais poderosa que seja, atua sempre dentro de limites impostos pela sua realidade política doméstica, regional e internacional; opera dentro de um sistema de valores dentro do qual tem de buscar uma base de legitimidade para suas ações e tem consciência de que o uso da força não necessariamente traz a solução desejada, dentro de uma relação flutuante entre custos e benefícios (hoje em dia, por exemplo, um soldado morto equivale politicamente a uma brigada inteira na Primeira Guerra...);
2) Em política, como em relações humanas, não há substituto para a diplomacia; mas diplomacia não significa ceder ante o poder ou ante a ameaça da força, significa canalizar o poder e a força. Não é verdade que apaziguar, cedendo, seja a forma de lidar com os poderosos. Como dizia Churchill ao criticar o "appeasement" que levou à Conferência de Munique (1938) e à partilha da Tchecoslováquia (1939), um apaziguador é apenas alguém que "alimenta o crocodilo na esperança de ser o último a ser comido".
Quando há interesses concorrentes ou conflitantes, não há alternativa para a negociação; caso contrário, o confronto cedo ou tarde virá; mas, numa negociação, não há opções fora a clareza de objetivos, a consciência do próprio poder, a firmeza de voz, a frieza, a paciência e, em especial, a sensibilidade para o poder, as razões e argumentos do outro.
Esse é o fascínio da crise dos mísseis, um episódio a ser não só recordado e explicado aos mais jovens, mas revisitado, com os olhos de hoje e a consciência da sabedoria que nos dá a história. Porque foi uma crise tratada com uma diplomacia exemplar, podemos falar dela como parte do passado e seguir adiante, enriquecidos com a dura experiência.


Sérgio França Danese, 47, diplomata, é ministro na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e autor de "Diplomacia Presidencial" (Top Books, 1999). As idéias deste artigo são de responsabilidade do autor e não engajam o Ministério das Relações Exteriores ou o governo brasileiro.


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