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ANTONIO DELFIM NETTO
Moto-contínuo
A economia mundial está virando muito depressa. A recuperação dos EUA é cada vez mais visível,
mas enfrenta um enorme déficit fiscal
(para combater o processo recessivo e
financiar a guerra), o que provavelmente significa maior taxa de juros no
futuro. A necessidade de redução do
seu gigantesco déficit em conta corrente, por outro lado, exigirá uma desvalorização do dólar. Aliás, esta já se
iniciou no primeiro trimestre de 2002
e parece ganhar maior ímpeto. Se se
processar ordenadamente, nada há a
temer. É impossível ignorar, entretanto, que alta de taxa de juros nos EUA e
desvalorização do dólar no mercado
internacional não são um "menu" de
fácil degustação...
Estamos vendo a pressão americana
sobre o iene japonês e sobre o iuane
chinês e cresce a convicção de que, pelo menos, uma parte do ajuste do balanço em conta corrente dos EUA tem
de ser repartida com a valorização da
moeda chinesa, uma vez que a dimensão do déficit EUA-China é imensa. A
situação é delicada para o equilíbrio
de todo o comércio mundial, porque o
déficit americano é apenas a outra face
da demanda de bens e serviços do
mundo (e, portanto, do seu crescimento). Manter a economia mundial
funcionando bem, com uma desvalorização exagerada e rápida do dólar, é
tarefa impossível. A ausência de tensões inflacionárias, no entanto, afasta
a necessidade, a médio prazo, de elevação da taxa de juros americana, o
que aumenta a liquidez para os países
emergentes.
Em todos os países em via de desenvolvimento com mercado de capital
organizado, tem havido um movimento de alta das cotações em Bolsa.
O caso brasileiro é exemplar: a entrada
de capital para financiar nossas empresas com boa governança tem sido
substancial. O mesmo tem ocorrido
com as aplicações de estrangeiros na
Bolsa. Isso provoca, ao mesmo tempo,
uma valorização do real, um aumento
de preços dos papéis ali negociados e
um aumento da relação dívida pública/PIB. Não é de estranhar, portanto,
que, em dólares, a Bovespa tenha se
tornado a mais atraente de quantas
existem no mundo. Em 2003, os papéis na Bovespa subiram quase 60%,
enquanto o real se valorizou em quase
20%!
O movimento é geral: com a
Moody's elevando os papéis da Rússia
a "investiment grade", aumenta a percepção de que todos os emergentes estão melhorando e de que, muito em
breve, chegará a vez dos papéis brasileiros, entre os quais o C-Bond já atingiu sua maior valorização. Diante disso, não é de rejeitar a hipótese de que
tais recursos continuem a entrar, talvez em velocidade crescente, para
aproveitar a oportunidade do "upgrade" que fatalmente virá se continuar a
boa qualidade da nossa política econômica.
A partir de certo ponto, o jogo de aumentar os preços das ações e valorizar
o real cheira a um "moto-contínuo".
Como é pouco provável que possamos violar as leis da termodinâmica,
isso coloca um sério problema para o
Banco Central. O "capital da morte súbita" é como o amor do Vinícius:
"eterno, enquanto dura"! Estamos
surfando uma boa onda internacional
que depende da conjunção de pequenos e grandes efeitos não coordenados. Mas, claramente, esse efeito de
curto prazo tem um alto preço em si
mesmo (a remessa dos rendimentos),
um aumento da dívida pública/PIB e
um "trade-off" importante com as exportações no prazo longo. Além de
sangue-frio, o Banco Central precisa
de mais imaginação...
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras
nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br
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