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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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ANTONIO DELFIM NETTO

Moto-contínuo

A economia mundial está virando muito depressa. A recuperação dos EUA é cada vez mais visível, mas enfrenta um enorme déficit fiscal (para combater o processo recessivo e financiar a guerra), o que provavelmente significa maior taxa de juros no futuro. A necessidade de redução do seu gigantesco déficit em conta corrente, por outro lado, exigirá uma desvalorização do dólar. Aliás, esta já se iniciou no primeiro trimestre de 2002 e parece ganhar maior ímpeto. Se se processar ordenadamente, nada há a temer. É impossível ignorar, entretanto, que alta de taxa de juros nos EUA e desvalorização do dólar no mercado internacional não são um "menu" de fácil degustação...
Estamos vendo a pressão americana sobre o iene japonês e sobre o iuane chinês e cresce a convicção de que, pelo menos, uma parte do ajuste do balanço em conta corrente dos EUA tem de ser repartida com a valorização da moeda chinesa, uma vez que a dimensão do déficit EUA-China é imensa. A situação é delicada para o equilíbrio de todo o comércio mundial, porque o déficit americano é apenas a outra face da demanda de bens e serviços do mundo (e, portanto, do seu crescimento). Manter a economia mundial funcionando bem, com uma desvalorização exagerada e rápida do dólar, é tarefa impossível. A ausência de tensões inflacionárias, no entanto, afasta a necessidade, a médio prazo, de elevação da taxa de juros americana, o que aumenta a liquidez para os países emergentes.
Em todos os países em via de desenvolvimento com mercado de capital organizado, tem havido um movimento de alta das cotações em Bolsa. O caso brasileiro é exemplar: a entrada de capital para financiar nossas empresas com boa governança tem sido substancial. O mesmo tem ocorrido com as aplicações de estrangeiros na Bolsa. Isso provoca, ao mesmo tempo, uma valorização do real, um aumento de preços dos papéis ali negociados e um aumento da relação dívida pública/PIB. Não é de estranhar, portanto, que, em dólares, a Bovespa tenha se tornado a mais atraente de quantas existem no mundo. Em 2003, os papéis na Bovespa subiram quase 60%, enquanto o real se valorizou em quase 20%!
O movimento é geral: com a Moody's elevando os papéis da Rússia a "investiment grade", aumenta a percepção de que todos os emergentes estão melhorando e de que, muito em breve, chegará a vez dos papéis brasileiros, entre os quais o C-Bond já atingiu sua maior valorização. Diante disso, não é de rejeitar a hipótese de que tais recursos continuem a entrar, talvez em velocidade crescente, para aproveitar a oportunidade do "upgrade" que fatalmente virá se continuar a boa qualidade da nossa política econômica.
A partir de certo ponto, o jogo de aumentar os preços das ações e valorizar o real cheira a um "moto-contínuo". Como é pouco provável que possamos violar as leis da termodinâmica, isso coloca um sério problema para o Banco Central. O "capital da morte súbita" é como o amor do Vinícius: "eterno, enquanto dura"! Estamos surfando uma boa onda internacional que depende da conjunção de pequenos e grandes efeitos não coordenados. Mas, claramente, esse efeito de curto prazo tem um alto preço em si mesmo (a remessa dos rendimentos), um aumento da dívida pública/PIB e um "trade-off" importante com as exportações no prazo longo. Além de sangue-frio, o Banco Central precisa de mais imaginação...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br


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