São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Afinidades eletivas
DENIS LERRER ROSENFIELD
A não-novidade baseia-se no caráter cartorial do Estado brasileiro, que remonta à sua estrutura patrimonial, em que os fundos públicos eram objeto de uma apropriação privada por parte dos que detinham o poder. Estruturou-se inclusive todo um imaginário, segundo o qual galgar posições no Estado equivaleria a benefícios privados, extraídos à revelia dos interesses coletivos. Criou-se uma mentalidade em que ser funcionário de Estado seria algo por si mesmo prestigioso e, dependendo do caso, proveitoso do ponto de vista dos interesses privados. Apesar da já bem conhecida inoperância do Estado brasileiro, continua-se a tudo pedir a ele, como se ele fosse, providencialmente, capaz de resolver todos os problemas. Assim, os partidos terminaram por se utilizar da estrutura estatal, embora se possa dizer que nenhum deles se apossou totalmente dos cargos de comissão e, tampouco, que tenha se fortalecido via contribuição obrigatória. A novidade, por sua vez, consiste em que uma outra tradição ideológico-política foi inseminada nessa estrutura estatal, a que remonta à concepção leninista do partido político. Essa experiência foi preliminarmente feita no governo Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, só que o seu feitio era tão dogmático que excluiu petistas de outras tendências. Eis por que ela terminou por ser objeto de repúdio dentro do próprio PT, precisamente pelos que tinham sido excluídos. Na verdade, criticava-se não a prática, mas a repartição de cargos realizada. O governo atual é mais equânime -para os seus, evidentemente. Quando há essa apropriação partidária do Estado, há uma ocupação ideológica, pois os "representantes" do partido procuram implementar sua ideologia em todas as instituições estatais. Isso já acontece no Ministério do Desenvolvimento Agrário, ocupado pelo MST e pela CPT, onde a ideologia da teologia/ filosofia da libertação, vertente comunista-cristã, é sustentada como a que deveria reger todos os órgãos do Estado. Em menor medida, esse processo começa a ocorrer no Ministério da Educação, via a demagogia lá instalada, pela qual uma espécie de "pedagogês" esquerdizante passa a comandar as decisões. Esse pedagogês aparece mascarado de cientificidade, sob o manto da avaliação da avaliação ou da didática da didática, desmontando o que foi feito e introduzindo sub-repticiamente uma pedagogia dos oprimidos, isto é, a hegemonia do partido, ou mesmo do MST. O aburguesamento dos militantes poderia contra-arrestar essa tendência esquerdista. Essa leitura é bem plausível, podendo indicar um caminho que estaria sendo percorrido. Uma outra leitura é, porém, também possível. Esses militantes poderiam agarrar-se ao poder de qualquer forma, pois perderiam o emprego em caso de derrota eleitoral. Como muitas dessas pessoas são pouco qualificadas, não encontrariam emprego de mesmo nível na iniciativa privada. Por último, o PT se fortalece por intermédio das contribuições, que são obrigatoriamente deduzidas dos salários, segundo percentuais partidariamente estabelecidos. O partido se torna mais importante na medida em que ocupa mais cargos, dando lugar a uma relação proporcional de mútuo benefício. O partido ganha, o Estado perde. Muitas vezes torna-se difícil ver o que de novo está acontecendo, pois o nosso olhar permanece orientado por uma espécie de repetição que não é uma. No meio desse embate, encontramo-nos todos nós. Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Eduardo Pereira de Carvalho: A miopia dos organismos internacionais Índice |
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