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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Afinidades eletivas

DENIS LERRER ROSENFIELD

Se a prática do governo está demonstrando que o PT não tinha uma proposta para o país, o mesmo não se pode dizer de seu projeto de poder, este sim muito bem estabelecido. São bem conhecidas as declarações dos atuais dirigentes de que a postura oposicionista de antanho era simplesmente inconsistente, traduzindo-se, na verdade, por meras "bravatas". O que era então criticado tornou-se hoje aceito como uma prática de governo, sem que as questões substanciais tenham sido minimamente enfrentadas.
A última em data foi a reforma tributária, na qual problemas essenciais, como o da reforma do Estado, não foram nem sequer abordados. A questão em pauta não consiste no rearranjo do valor dos tributos e impostos, mas em sua destinação, que deveria estar focalizada na melhoria dos serviços prestados pelo Estado, como a saúde e a educação. Em vez disso, decretou-se toda uma discussão entre os ditos entes federativos e a União, tendo como propósito manter ou aumentar a já pesada carga tributária que incide sobre os cidadãos em geral e as empresas em particular.
Esse exemplo não é casual, pois resulta de uma desorientação geral, produzida pela conversão petista ao ideário do governo FHC, sem que tenha sido feito o luto de posições anteriores. Na verdade, o não-esclarecimento da conversão tende a acentuar as características demagógicas, presentes em boa parte dos discursos dos atuais governantes. Contudo há uma orientação constante em todo esse processo, a saber, o projeto de conquista e de permanência no poder, presente no aparelhamento partidário da máquina estatal.
O "emprego" dos militantes partidários em cargos de confiança, dos mais elevados aos de menor valor, passando pelas empresas estatais e pelos fundos de pensão, é uma prática que, de um lado, deita raízes no próprio Estado brasileiro e, de outro, corresponde a um projeto de poder de inspiração esquerdista, assentado na apropriação do Estado para a realização de uma posterior mudança política.


O "emprego" dos militantes partidários em cargos de confiança é uma prática que deita raízes no próprio Estado brasileiro

A não-novidade baseia-se no caráter cartorial do Estado brasileiro, que remonta à sua estrutura patrimonial, em que os fundos públicos eram objeto de uma apropriação privada por parte dos que detinham o poder. Estruturou-se inclusive todo um imaginário, segundo o qual galgar posições no Estado equivaleria a benefícios privados, extraídos à revelia dos interesses coletivos. Criou-se uma mentalidade em que ser funcionário de Estado seria algo por si mesmo prestigioso e, dependendo do caso, proveitoso do ponto de vista dos interesses privados. Apesar da já bem conhecida inoperância do Estado brasileiro, continua-se a tudo pedir a ele, como se ele fosse, providencialmente, capaz de resolver todos os problemas.
Assim, os partidos terminaram por se utilizar da estrutura estatal, embora se possa dizer que nenhum deles se apossou totalmente dos cargos de comissão e, tampouco, que tenha se fortalecido via contribuição obrigatória.
A novidade, por sua vez, consiste em que uma outra tradição ideológico-política foi inseminada nessa estrutura estatal, a que remonta à concepção leninista do partido político. Essa experiência foi preliminarmente feita no governo Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, só que o seu feitio era tão dogmático que excluiu petistas de outras tendências. Eis por que ela terminou por ser objeto de repúdio dentro do próprio PT, precisamente pelos que tinham sido excluídos. Na verdade, criticava-se não a prática, mas a repartição de cargos realizada. O governo atual é mais equânime -para os seus, evidentemente.
Quando há essa apropriação partidária do Estado, há uma ocupação ideológica, pois os "representantes" do partido procuram implementar sua ideologia em todas as instituições estatais. Isso já acontece no Ministério do Desenvolvimento Agrário, ocupado pelo MST e pela CPT, onde a ideologia da teologia/ filosofia da libertação, vertente comunista-cristã, é sustentada como a que deveria reger todos os órgãos do Estado.
Em menor medida, esse processo começa a ocorrer no Ministério da Educação, via a demagogia lá instalada, pela qual uma espécie de "pedagogês" esquerdizante passa a comandar as decisões. Esse pedagogês aparece mascarado de cientificidade, sob o manto da avaliação da avaliação ou da didática da didática, desmontando o que foi feito e introduzindo sub-repticiamente uma pedagogia dos oprimidos, isto é, a hegemonia do partido, ou mesmo do MST.
O aburguesamento dos militantes poderia contra-arrestar essa tendência esquerdista. Essa leitura é bem plausível, podendo indicar um caminho que estaria sendo percorrido. Uma outra leitura é, porém, também possível. Esses militantes poderiam agarrar-se ao poder de qualquer forma, pois perderiam o emprego em caso de derrota eleitoral. Como muitas dessas pessoas são pouco qualificadas, não encontrariam emprego de mesmo nível na iniciativa privada.
Por último, o PT se fortalece por intermédio das contribuições, que são obrigatoriamente deduzidas dos salários, segundo percentuais partidariamente estabelecidos. O partido se torna mais importante na medida em que ocupa mais cargos, dando lugar a uma relação proporcional de mútuo benefício. O partido ganha, o Estado perde.
Muitas vezes torna-se difícil ver o que de novo está acontecendo, pois o nosso olhar permanece orientado por uma espécie de repetição que não é uma. No meio desse embate, encontramo-nos todos nós.

Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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