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TENDÊNCIAS/DEBATES
Eu fiz três abortos
ANTONIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO
Tive formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil; por contingências da vida, com três parceiras, me vi impelido a encarar abortos
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"O búzio e a pérola: aperfeiçoa-te na
arte de escutar, só quem ouviu o rio
pode ouvir o mar"
LEÃO DE FORMOSA
Neste momento em que a discussão sobre o aborto entra na campanha pelas portas dos fundos, da hipocrisia, da indigência intelectual e
da falta de compromisso com a realidade brasileira, penso ser importante que nós, a dita sociedade formadora de opinião -sim, nós existimos-, nos manifestemos.
Sou católico e tive uma formação
que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil. Por contingências
da vida, em três diferentes oportunidades, com três parceiras distintas, há longo tempo, eu me vi impelido a encarar um aborto.
Em nenhuma das três situações
eu queria que o aborto fosse feito,
mas respeitei, com dor e resignação, a decisão da mulher.
Na primeira, eu era muito novo e
sem nenhuma condição financeira.
Vários amigos não tiveram dificuldade em apontar um "aborteiro".
Além da pressão e do sentimento
de perda e medo, tivemos de encarar um quarto fétido, no qual as
próprias pessoas na fila demonstravam que a hipótese de dar errado
era enorme. Durante o procedimento, eu mesmo tive que largar a mão
dela, que segurava em solidariedade, para ajudar a terminar o aborto,
pois senão ela teria morrido.
Foi uma recuperação dificílima,
traumática, pois ela reteve placenta, inchou muito e sentia dores horríveis. Foi preciso procurar um médico; enfim, um calvário. Nossa relação também foi abortada ali.
No segundo, a companheira tinha boa situação financeira. Optou
pelo melhor hospital da cidade, internou-se com seu médico de confiança e saiu no outro dia para trabalhar. Não sei das dores indizíveis
do coração dela à época, pois nossa
intimidade não chegava a tanto.
Também virou um rosto apagado
em minha memória, mas eu ainda
carrego comigo essa sombra.
A terceira não podia fazer o aborto em um hospital da cidade, por
ser muito conhecida. Nada que
uma viagem rápida ao exterior não
pudesse resolver.
Agora, vejo que o aborto domina
a campanha presidencial.
A pergunta errada, covarde, maldosa e bandida é: "Você é a favor do
aborto?". Ora, ninguém, em sã
consciência, é a favor do aborto, e
não é isso o que está em discussão,
salvo para os marqueteiros e os fanáticos religiosos.
O que deve ser motivo de reflexão é a realidade estampada corajosamente pelos grandes veículos
de comunicação: cerca de 1,1 milhão de abortos clandestinos são
feitos todo ano no Brasil; a cada
dois dias, uma mulher é morta ao
fazer aborto clandestino; pelos dados do SUS, o que faz presumir que
o número seja muito maior, são 200
mortes por ano.
Isso sem contar as que morrem
Brasil afora sem nem sequer virarem estatística. Passaram pela rede
pública no ano passado, para fazer
curetagem, 184 mil mulheres que
abortaram clandestinamente e tiveram complicações; em 12 anos, o
SUS fez mais de 3 milhões de curetagens no Brasil.
O fato concreto é que uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos
já abortou e mais de 5 milhões de
brasileiras já passaram por esse
trauma.
É a realidade batendo nas nossas
caras e clamando para ser encarada
como o que é: um problema, seríssimo, de saúde pública!
Se os dois candidatos, que
honram o Brasil com seus currículos, admitissem em conjunto e ao
mesmo tempo essa tese, estariam
tirando esta discussão do obscurantismo e projetando um pouco de
luz nas trevas que caem e tornam
opacas as vidas de tantos brasileiros. Homens e mulheres.
ANTONIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, é
advogado criminalista. Foi secretário do Conselho
de Direitos da Pessoa Humana (governo Sarney).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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