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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula não está traindo ninguém

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA


Não há possibilidade de retomada do crescimento nem de eliminação do déficit público com a atual taxa de juros básica

Estão enganados aqueles que acusam o governo Lula de estar traindo os ideais de esquerda ao adotar uma política fiscal dura e ao privilegiar a recuperação do crédito externo por meio da manutenção de juros reais elevados. Política macroeconômica não é de esquerda ou de direita, mas competente ou incompetente. Por enquanto, ela está sendo competente, mas poderá deixar de sê-lo se, no momento apropriado, o governo for incapaz de mudá-la.
É de esquerda o governo que sabe que, para reduzir a desigualdade e o privilégio, é necessário um Estado com capacidade institucional e administrativo-financeira que corrija as falhas do mercado nos planos social e econômico. A política econômica, portanto, pode ser de esquerda; já a macroeconômica, muito menos. Não são apenas os economistas de esquerda mas qualquer bom economista que têm como objetivo uma taxa de juros baixa.
O governo só estará traindo seus próprios ideais se hesitar em baixar decisivamente a taxa de juros quando for possível baixá-la, ou seja, quando o crédito internacional do Brasil estiver razoavelmente restabelecido.
Existe um curioso paralelo entre as alternativas de política macroeconômica que o governo brasileiro enfrenta em 2003 e as que enfrentava oito anos atrás. Naquela ocasião, havia um óbvio desequilíbrio -a taxa de câmbio se valorizara no segundo semestre de 1994-, mas o novo governo não podia agir, porque a crise do México desestabilizara os mercados internacionais e a economia brasileira se encontrava superaquecida. Era preciso antes desvalorizar, esperar que assentasse a poeira mexicana e tomar providências para desaquecer a economia interna.
Agora, o problema é semelhante. O desequilíbrio óbvio é o da taxa de juros básica, de curto prazo, paga pelo Banco Central para rolar sua dívida. Essa taxa, em termos reais, é de duas a três vezes maior do que a taxa de países com igual classificação de risco. Não há possibilidade de retomada do desenvolvimento nem de eliminação do déficit público com essa taxa. O máximo que se pode conseguir é um superávit primário.
Entretanto, também no momento, dadas a iminência de uma guerra contra o Iraque, a crise de balanço de pagamentos deixada pela administração Malan-Fraga e as desconfianças que ainda subsistem, a política do governo, que buscou um choque de credibilidade, era a única coisa a ser feita. O governo já avançou nessa direção, como a redução do risco-país e o retorno dos financiamentos demonstram. A questão agora, como em 1995, é saber quando surgem as condições para mudar a política.
Em 1995, essas condições se materializaram em outubro, quando a economia brasileira já se desaquecera e a poeira da crise mexicana já havia baixado. O governo, porém, se acomodou, agiu como dele esperavam os mercados financeiros e o pensamento econômico convencional. Sabemos como foi desastrosa essa acomodação.
Na presente situação, o momento de mudar a política e começar a baixar decisivamente a taxa de juros básica será aquele em que uma de duas condições se realizarem: o risco-país baixar para cerca de 10%, ou a taxa de câmbio cair para cerca de R$ 3,20. Essas duas fronteiras são bons indicadores de que a situação da economia brasileira se normalizou e de que chegou o momento de agir. Nesse momento, o governo já deverá ter demonstrado que foi capaz de aumentar o superávit fiscal.
A determinação de baixar a taxa de juros básica encontrará oposição do mercado financeiro e de Washington (Tesouro, FMI e Banco Mundial). Ambos, além de usarem uma teoria econômica convencional e padronizada, são conservadores: dirão que, "primeiro", é preciso começar a baixar, ou pelo menos estabilizar, o endividamento interno em termos reais, e, "depois", baixar os juros. Não percebem que o Brasil se encontra há muitos anos em uma armadilha da taxa de juros básica alta e que, para escapar dela, é preciso adotar estratégias que, mesmo prudentes, envolvam determinação e coragem.
O fato de o mercado financeiro estar contra essa redução não impedirá o êxito da política. É preciso distinguir dois mercados. Há um mercado financeiro "personalizado", subjetivado, que "acha", que "é contra", que "gosta", e há o verdadeiro mercado -um espaço institucional competitivo em que se trocam informações e se compram e vendem títulos de acordo com determinadas regras. O mercado "subjetivado" é dominado por alguns economistas e operadores, que usam uma teoria convencional compartilhada pelos demais agentes e que se aproveitam da rapidez das comunicações -não apenas de fatos mas também de opiniões que a tecnologia das informações permitiu.
Ainda que esse mercado "personalizado" se sobreponha e, em parte, se confunda com o mercado verdadeiro, este último, constituído pelos que realmente compram e vendem no mercado e dirigido por princípios de racionalidade, continua a ser o que vale. Por outro lado, o mercado "personalizado" é pragmático: quando vê que as políticas às quais se opôs começam a funcionar, seus líderes de opinião mudam rapidamente de posição. Com frequência, esse mercado está equivocado, mas jamais é dogmático em seus erros.
No momento em que se materializarem as condições necessárias e o governo decidir mudar a política macroeconômica, este deverá saber que estará entrando em um jogo em que o mercado "personalizado" é o adversário, enquanto o mercado verdadeiro é o campo em que o jogo acontece. Que o adversário quer ser também o árbitro do jogo. Mas que é possível derrotar adversários auto-interessados e equivocados.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 68, é professor de economia na FGV-SP e editor da "Revista de Economia Política". Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).


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