São Paulo, quinta-feira, 16 de março de 2006

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DEMÉTRIO MAGNOLI

A hora e a vez do Caveirão

Depois que terminou a Operação Asfixia, de ocupação militar dos morros do Rio de Janeiro, o narcotráfico devolveu ao Exército as armas roubadas. O desfecho decorreu de negociações sigilosas entre o Estado oficial e o Estado paralelo criado pelo Comando Vermelho. Só faltou trocarem embaixadores.
A parcela da mídia sempre disponível para incensar as autoridades exibiu a pantomima de dez dias como um enfrentamento do Exército contra os traficantes. Mas o Exército subiu os morros propondo um acordo com os criminosos: a troca do retorno à "normalidade" (isto é, a liberdade dos negócios e a vigência do poder do crime organizado no "seu" território) pela devolução dos fuzis. Os traficantes aceitaram o compromisso, não sem antes impor aos militares um rosário de humilhações.
Nos dez dias da pantomima, a força letal do Exército não matou ou prendeu nenhum chefe de morro ou mesmo gerente de boca. Em compensação, soldados reviraram casas humildes e revistaram crianças com base em mandados judiciais coletivos, ou seja, ilegais. Questionado sobre os abusos, Lula murmurou uma frase carente de sentido, e Márcio Thomaz Bastos replicou que, "se for discutir isso no pormenor, a gente não chega a lugar nenhum". O ministro do Arbítrio não se preocupa com "pormenores" legais, a não ser quando se trata de seus antigos clientes milionários ou dos novos "clientes" instalados no Palácio do Planalto.
Os Urutus já não circulam nos morros. Com a "normalidade", retorna às favelas o Caveirão, veículo blindado adaptado para rondas da PM que expõe na lateral o emblema do Bope. O Caveirão anuncia-se nas vielas por meio de alto-falantes que berram frases como: "Se você deve, eu vou pegar a sua alma". Ao aproximar-se de transeuntes, os policiais embarcados bradam: "Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire... agora pode ir...". O megafone do Caveirão é o porta-voz da política de segurança pública dos Garotinho e do seu secretário da Insegurança, Marcelo Itagiba: criminalização da população dos morros e conluio tácito com os traficantes.
A "guerra ao tráfico", deflagrada em 1984 por Ronald Reagan, é um fracasso ou, mais propriamente, um instrumento de ingerência em assuntos de segurança interna de nações soberanas. Mas o que há nos morros do Rio de Janeiro e em áreas de outras metrópoles brasileiras não é apenas comércio de drogas: é a territorialização do narcotráfico. O fenômeno, embrião de uma "colombianização" do país, exige um programa de restauração da soberania. Isso significa levar o Estado aos territórios submetidos ao poder paralelo do crime, neles instalando o conjunto de equipamentos públicos básicos (hospitais, postos de saúde, escolas, creches e, sobretudo, delegacias de polícia) e incorporando-os plenamente ao tecido urbano das cidades.
Não é programa para ONGs. Só pode ser detonado pela ocupação permanente dos "territórios do crime" por forças policiais federais, com a retaguarda do Exército. Mas a sua bandeira deve ser a Constituição: os direitos dos cidadãos. A certeza de que o Estado chegou para ficar, de que não se repetirá o ciclo de efêmeras "invasões", é a única chance de conquistar o apoio das comunidades atemorizadas pelos criminosos.
É coisa para estadistas, não para políticos liliputianos.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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