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São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 2003

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JOSÉ SARNEY

Cultura, bebida e fumo

Muito já se discutiu sobre incentivos fiscais à cultura. Faz muito bem o ministro Gilberto Gil em esquentar o tema. Há no país uma cultura de que a cultura é supérflua. Em vez de ajudada, é tratada como se merecesse tributação, assim como bebida e fumo. Há, sempre houve, um sentimento de que apoiá-la tem um pouco a ver com caridade, "beau geste" e altruística bondade.
Essa visão não é monopólio do Brasil. Seria um grande avanço o dia em que os bens culturais fossem tratados dentro da sociedade nos mesmos tons que os materiais. Sou um inveterado defensor de colocarmos a cultura na mesa das decisões de Estado no mesmo nível da economia, das indústrias estratégicas, da infra-estrutura e de todas essas coisas relacionadas como fundamentais à sociedade.
Coloquei em pauta no Brasil o problema dos incentivos fiscais à cultura. Em 1972, apresentei o primeiro projeto a tratar do assunto. Minha inspiração vinha dos Estados Unidos, que, então, havia 20 anos, utilizavam esse instrumento. Renovei por quatro vezes essa proposição legislativa. Os governos não a aprovaram. O Ministério da Fazenda não a queria. Era coisa de poeta, a cultura não precisava disso. Era atividade de excêntricos e de nefelibatas. Incentivavam-se indústrias, reflorestamento, exportação, bois e vacas. Bilhões eram e são dados a essas áreas por meio da renúncia fiscal.
Foi preciso que eu chegasse à Presidência para transformar o projeto em lei. A tal Lei Sarney, que meu sucessor, por causa do nome, revogou em seu primeiro ato.
A lei tinha uma finalidade: separar os recursos orçamentários destinados à cultura e colocar a iniciativa privada na produção de bens culturais. Criar mercado rentável de artes, de literatura, de cinema, de teatro, de música e no setor editorial.
Depois, modificaram a lei e criaram uma coisa engessada, o mecenato de Estado! A burocracia tem sempre a sedução de monitorar, decidir, aprovar e interferir no processo da criação artística. O Ministério da Cultura é a Meca dos atribulados produtores culturais, e nunca foi possível fazer uma efetiva política cultural, nem para a cultura erudita nem para a cultura popular. Ressalvem-se os ministros. Não foram eles. Foi a política econômica que manteve a cultura à míngua de recursos, mendigando.
Explorou-se o único filão que restou: os incentivos, que, destinados à atividade privada, passaram a suprir a falta de recursos públicos. Vieram a promiscuidade e as distorções entre incentivos e verbas para uma política cultural, de responsabilidade do Estado.
Jack Lang, ministro de Cultura da França, disse a Celso Furtado, ministro da Cultura do Brasil no meu tempo: "Nós queríamos na França ter uma lei como a de vocês".
Um gesto de vingança pôs fim nela.
Agora, Gil, com seu talento e criatividade, está rediscutindo o assunto.
Realmente, os incentivos das companhias estatais não são privados, mas públicos. Por que não recolhê-los ao Fundo de Cultura, dando a este recursos que ele não tem? Por que não proibir que grandes grupos usem incentivos em benefício de projetos próprios? Corrigindo as distorções, deixemos a iniciativa privada produzir bens culturais incentivados em liberdade.
Vamos ver se as águas voltam a seu leito.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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