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JOSÉ SARNEY
Cultura, bebida e fumo
Muito já se discutiu sobre incentivos fiscais à cultura. Faz muito
bem o ministro Gilberto Gil em esquentar o tema. Há no país uma cultura de que a cultura é supérflua. Em vez
de ajudada, é tratada como se merecesse tributação, assim como bebida e
fumo. Há, sempre houve, um sentimento de que apoiá-la tem um pouco
a ver com caridade, "beau geste" e altruística bondade.
Essa visão não é monopólio do Brasil. Seria um grande avanço o dia em
que os bens culturais fossem tratados
dentro da sociedade nos mesmos tons
que os materiais. Sou um inveterado
defensor de colocarmos a cultura na
mesa das decisões de Estado no mesmo nível da economia, das indústrias
estratégicas, da infra-estrutura e de todas essas coisas relacionadas como
fundamentais à sociedade.
Coloquei em pauta no Brasil o problema dos incentivos fiscais à cultura.
Em 1972, apresentei o primeiro projeto a tratar do assunto. Minha inspiração vinha dos Estados Unidos, que,
então, havia 20 anos, utilizavam esse
instrumento. Renovei por quatro vezes essa proposição legislativa. Os governos não a aprovaram. O Ministério
da Fazenda não a queria. Era coisa de
poeta, a cultura não precisava disso.
Era atividade de excêntricos e de nefelibatas. Incentivavam-se indústrias,
reflorestamento, exportação, bois e
vacas. Bilhões eram e são dados a essas
áreas por meio da renúncia fiscal.
Foi preciso que eu chegasse à Presidência para transformar o projeto em
lei. A tal Lei Sarney, que meu sucessor,
por causa do nome, revogou em seu
primeiro ato.
A lei tinha uma finalidade: separar
os recursos orçamentários destinados
à cultura e colocar a iniciativa privada
na produção de bens culturais. Criar
mercado rentável de artes, de literatura, de cinema, de teatro, de música e
no setor editorial.
Depois, modificaram a lei e criaram
uma coisa engessada, o mecenato de
Estado! A burocracia tem sempre a sedução de monitorar, decidir, aprovar
e interferir no processo da criação artística. O Ministério da Cultura é a Meca dos atribulados produtores culturais, e nunca foi possível fazer uma
efetiva política cultural, nem para a
cultura erudita nem para a cultura popular. Ressalvem-se os ministros. Não
foram eles. Foi a política econômica
que manteve a cultura à míngua de recursos, mendigando.
Explorou-se o único filão que restou:
os incentivos, que, destinados à atividade privada, passaram a suprir a falta
de recursos públicos. Vieram a promiscuidade e as distorções entre incentivos e verbas para uma política
cultural, de responsabilidade do Estado.
Jack Lang, ministro de Cultura da
França, disse a Celso Furtado, ministro da Cultura do Brasil no meu tempo: "Nós queríamos na França ter
uma lei como a de vocês".
Um gesto de vingança pôs fim nela.
Agora, Gil, com seu talento e criatividade, está rediscutindo o assunto.
Realmente, os incentivos das companhias estatais não são privados, mas
públicos. Por que não recolhê-los ao
Fundo de Cultura, dando a este recursos que ele não tem? Por que não proibir que grandes grupos usem incentivos em benefício de projetos próprios?
Corrigindo as distorções, deixemos a
iniciativa privada produzir bens culturais incentivados em liberdade.
Vamos ver se as águas voltam a seu
leito.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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