São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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BARBÁRIE GLOBAL

O traço positivista que marca nossa sociedade científico-tecnológica nos leva a crer -talvez ingenuamente- num contínuo aprimoramento da civilização. Não há como negar que, da medicina de Hipócrates até os modernos antibióticos e transplantes cardíacos, se registraram avanços. Da mesma forma, são evidentes as melhorias havidas desde as primeiras carroças pré-históricas até os jatos supersônicos.
Esse acúmulo de competência técnica, porém, não se fez acompanhar de uma maior capacidade de lidar com determinadas situações políticas. Os progressos não trouxeram consigo o fim da miséria e das guerras. Ao contrário, o saber técnico tem muitas vezes ampliado até escalas industriais a habilidade humana em matar semelhantes. Necessidades bélicas têm se constituído, para o bem e para o mal, na vanguarda do desenvolvimento científico. Foi a bomba atômica que nos levou ao domínio da energia nuclear. Analogamente, foi a corrida espacial no contexto da Guerra Fria que proporcionou o uso de satélites.
Basta, porém, percorrer o noticiário internacional dos últimos dias para fazer com que até o mais rematado dos positivistas tenha abalada sua confiança no progresso da humanidade. Já chegam a centenas as fotos de soldados norte-americanos infligindo maus-tratos a prisioneiros no Iraque. Como pessoas mentalmente sãs evitam deixar-se fotografar em situações comprometedoras, parece lícito concluir que a tortura era generalizada. Em represália, extremistas islâmicos degolam um civil norte-americano que haviam tomado como refém. Colocam as imagens do bárbaro crime na internet.
Algumas centenas de quilômetros a oeste, tropas israelenses fazem uma nova incursão em Gaza que deixa um saldo de vários palestinos mortos. Uma emboscada contra um veículo militar israelense custou a vida a cinco soldados. Pedaços de seus corpos foram exibidos como troféus.
Essas são apenas as ocorrências da semana que ganharam maior visibilidade. Há em curso dezenas de outros conflitos e presumivelmente incontáveis demonstrações de barbárie, a maioria fora do alcance -ou do interesse- da mídia.
O ceticismo em relação ao progresso humano talvez possa ser contrastado, numa retrospectiva de maior amplitude, por alguns avanços incontestáveis, ainda que em quantidade e ritmo menor do que os desejáveis. Com efeito, no espaço relativamente curto dos últimos dois ou três séculos, a chaga da escravidão foi quase erradicada do planeta. Ela subsiste apenas endemicamente, em situações especiais. Mesmo a tortura passou de procedimento judicial regular a instrumento clandestino que desperta a indignação de grande parte da opinião pública mundial.
O que as imagens de violência desmedida divulgadas nos últimos dias evidenciam é o quanto ainda há que se caminhar para a elevação dos padrões civilizatórios em todos os quadrantes do planeta. A natureza humana, que por vezes se revela terrivelmente brutal, não pode ser apagada, mas pode e deve ser moldada pelas forças da civilização.


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