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União, seguradora universal?
Alguns juízes entendem que estão a criar uma jurisprudência libertária
quando condenam a União a pagar indenizações
GILMAR FERREIRA MENDES
Algumas práticas interpretativas
no direito conduzem a equívocos
notáveis, nos quais uma visão parcial do
problema compromete a correta aplicação das leis e da Constituição. Entretanto, os equívocos passam a não mais ser
aceitáveis quando assumem uma feição
de patologia institucional. É o que vem
ocorrendo, desde há alguns anos, no tocante à interpretação das regras jurídicas referentes à responsabilidade civil
do Estado.
O direito brasileiro, como é sabido
por todos, aceita a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Mas será que
isso quer dizer a responsabilidade do
poder público por qualquer fato ou ato,
comissivo ou omissivo, no qual esteja
envolvido direta ou indiretamente?
Qualquer acadêmico de direito que tenha uma mínima noção dos requisitos
para a configuração dessa responsabilidade civil sabe que não.
Porém alguns de nossos advogados e
magistrados têm se servido de um conceito amplíssimo de responsabilidade
objetiva, levando às raias do esoterismo
a exegese para a definição do nexo causal. A esse respeito, alguns exemplos podem indicar a dramaticidade do problema, que não se restringe a discussões
meramente acadêmicas -ao contrário,
tratam do próprio núcleo do interesse
público.
Recentemente, o Supremo Tribunal
Federal, no recurso extraordinário nº
220.999, corrigiu uma dessas perplexidades. A hipótese, em resumo, era de
uma empresa que pleiteava ressarcimento por cessação de lucros decorrentes da interrupção do escoamento de
sua produção após a suspensão da prestação de serviço de transporte fluvial pela sociedade de economia mista federal
Franave. Para o espanto de todos, a decisão de primeira instância, confirmada
pelo Tribunal Regional Federal da 5ª região, entendia que a União tinha o dever
de manter em funcionamento a sociedade, mesmo que não houvesse nenhuma previsão legal a respeito nem obrigação de continuidade dos serviços entre a Franave e a autora da ação.
Pior, a decisão funda-se num misto de
responsabilização da União pela edição
de atos legislativos referentes à possibilidade de cessão dos bens da Franave
para os Estados e municípios no processo de desestatização e responsabilização
pela desativação da empresa, acusada
como omissão da União. Em última
análise, o que pleiteava a empresa era o
direito ao lucro garantido, a ser custeado pelo Estado.
Graças à atuação diligente da Procuradoria da União em Pernambuco, o
STF teve o bom senso voltar aos autos,
corrigindo grave e lamentável equívoco
do TRF da 5ª região, ao interpretar de
forma precisa o nexo causal exigido para a apuração da responsabilidade.
Não paremos por aí. As companhias
aéreas, beneficiárias de extensos estímulos e subvenções em determinado
período, pleiteiam ressarcimentos por
parte da União, em razão de supostas
defasagens nas tarifas aéreas, decorrentes de planos econômicos.
Também os empresários do setor sucroalcooleiro pretendem ser ressarcidos
pela União por supostos prejuízos ocorridos no período compreendido entre
março de 85 e outubro de 89, decorrentes da política econômica adotada pelo
governo federal para o setor. Naquele
período, o extinto Instituto do Açúcar e
do Álcool (IAA) era encarregado de definir os preços, tendo por subsídio levantamento de custos médios efetuados
pela Fundação Getúlio Vargas.
O fundamento das decisões judiciais é
a infundada ilicitude decorrente da violação da lei nº 4.870/65, pois o IAA não
reconhecia caráter vinculante aos levantamentos da FGV, e essa equivocada
presunção de ilícito determinou a incidência de correção monetária e juros
desde a data da suposta lesão a direito.
Em verdade, essas decisões violaram a
lei nº 4.870/65, bem como o decreto-lei
nº 2.335/87 e a lei nº 7.730/89 (oriunda
da medida provisória nº 32/89), que legitimavam a fixação dos preços pelas
autoridades públicas ou determinavam
congelamentos de preços.
O cortejo de aberrações não termina, e
esses pleitos, pulverizados dentro da
brutal massa de processos judiciais em
curso, passam despercebidos, arrimados frequentemente em laudos e pareceres técnicos de duvidosa idoneidade.
Alguns juízes entendem que estão a
criar uma jurisprudência libertária
quando condenam a União -a pobre
sociedade brasileira- a pagar vultosas
indenizações a segmentos largamente
privilegiados, seja com a política de subsídios do passado, seja com a generosa
hermenêutica do presente.
Por mais que se faça um pretenso juízo de equidade, constitui abuso querer
transformar o poder público em salvador de empresas com gestões comprometidas e concebidas dentro do peculiar conceito de capitalismo "à brasileira", no qual os lucros são apropriados e
os prejuízos são socializados.
A consideração central a fazer é: se determinados planos econômicos ou se
determinadas políticas públicas afetaram toda a sociedade, por que razão
pretenderiam alguns privilegiados encontrar numa atuação global do poder
público um nexo de causalidade com
eventual prejuízo? Essa obscura lógica
só pode encontrar respaldo numa visão
distorcida de Estado, protetora de privilégios e de corporativismos.
É necessário, portanto, identificar no
Estado Democrático de Direito a formação do interesse público calcado em interesses universalizáveis e publicamente justificáveis. As razões e os interesses
forjados em um discurso e uma prática
corporativa, em sentido contrário, são
unilaterais, sectários e, frequentemente,
obscurantistas.
O que tem ocorrido, lamentavelmente, é a usurpação de instrumentos normativos destinados à proteção da cidadania para proteger privilégios, e os casos aqui abordados representam apenas
parcela das conspirações sectárias que
se fazem hoje para cooptar o interesse
público para a defesa de interesses obscuros e injustificáveis. A tarefa de todos,
nesse contexto, é desenvolver uma percepção crítica, para permitir a identificação e a denúncia das tentativas ilegítimas de apropriações indevidas de recursos da sociedade brasileira.
Gilmar Ferreira Mendes, 44, doutor em direito
pela Universidade de Münster (Alemanha) e professor da UnB (Universidade de Brasília), é advogado-geral da União.
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