São Paulo, sexta-feira, 16 de junho de 2000


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A reforma que nada reforma


Perde-se uma grande oportunidade de realizar algo que buscasse dar à Justiça um caráter eminentemente civil e ágil


HÉLIO BICUDO

Temos salientado que a reforma do Judiciário, segundo o texto aprovado na Câmara dos Deputados, é uma reforma feita apenas para que se possa dizer que se fez uma reforma, sem, entretanto, nada de relevante reformar.
Se nos detivermos no exame da proposta que sobe agora ao Senado, iremos verificar que a emenda original desapareceu e foi substituída por outra que nada lhe acrescenta -e, quando o faz, piora as condições para o estabelecimento de uma Justiça que não seja, como é hoje, privilégio de uns poucos.
Em primeiro lugar, não se criou o Tribunal Constitucional, proposto no projeto de emenda de 1991, que seria da maior importância para apontar os caminhos da institucionalidade democrática. Manteve-se, por outro lado, a mesma centralização existente em nosso sistema de distribuição de Justiça, conservados todos os mecanismos que hoje impedem sua agilização.
Acabou-se, por exemplo, por introduzir a súmula vinculante. Restringiu-se, é verdade, sua extensão, mas de qualquer forma a solução adotada, ainda quando restrita a súmulas das decisões do Supremo Tribunal Federal, constitui fator negativo no processo de interpretação da lei.
Optou-se pela adoção do chamado controle externo, na forma de um conselho nacional, o que, a meu ver, encontra óbices constitucionais diante dos princípios que informam o pacto federativo. Mesmo que assim não fosse, sua operacionalidade não alcançará a desejada eficiência, porque longa demais será sua "longa mano", a desfazer-se no tempo e no espaço.
Um controle burocrático nunca funcionou e não vai agora funcionar. O controle externo que se quer só irá realmente existir na medida em que se operar a descentralização do Poder Judiciário, a fim de possibilitar ao povo o acesso mais amplo aos seus serviços. A partir daí, os próprios jurisdicionados exercerão o controle.
Manteve-se a Justiça Militar para as Forças Armadas, a alimentar um quase-lazer altamente remunerado. É algo esdrúxulo, que não cabe na estrutura de um Estado democrático.
E, gravíssimo erro, não obstante sobejas provas de sua parcialidade corporativa, é mantida a Justiça Militar para a Polícia Militar. Nesse, como em outros casos, a Câmara dos Deputados submeteu-se aos "lobbies" sustentados, sem dúvida, até mesmo por militares, em especial do Exército, como mais um viés do poder militar que ainda domina determinados setores do governo.
De positivo há muito pouco, como a nova organização da Justiça do Trabalho, com a eliminação dos juízes classistas. É de ressaltar também a possibilidade de deslocamento da competência das Justiças estaduais para a Justiça Federal nas hipóteses de grave violação de direitos humanos.
A reforma traz, por último, um dispositivo que à primeira vista pode parecer relevante para a defesa dos direitos humanos, mas que, na verdade, não é. Diz o parágrafo 3º do artigo 50 do texto aprovado que "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais". Esquece-se o disposto no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, que diz que se inscrevem entre os direitos fundamentais não apenas os descritos nesse artigo, mas também os que derivam de tratados ratificados pelo Brasil. Com esse procedimento, os tratados que dizem respeito aos direitos humanos jamais ou muito dificilmente serão aprovados, possibilitando maior franquia na sua violação.
Como se vê, trata-se uma reforma conservadora, que traz retrocessos ao invés de avanços, com o intocável permanecendo intocado.
Perde-se, lamentavelmente, uma grande oportunidade de realizar algo que buscasse dar à Justiça um caráter eminentemente civil e, por outro lado, mais ágil, sem o distanciamento hoje existente entre as partes e o julgador, que a nega ao cidadão comum.


Hélio Bicudo, 77, jornalista e advogado, é presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e do Centro Santo Dias dos Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo. Foi deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98). É autor de "Meu Depoimento sobre o Esquadrão da Morte", entre outros livros.



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