São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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ANTÔNIO ERMÍRIO DE MORAES

O banquete da fome

Quando o telefone tocou, eu estava no carro do Matias, indo para um restaurante que, na opinião dele, é o melhor de São Paulo em matéria de peixes e crustáceos.
O "alô" ouvido no "viva-voz" do carro já denunciou quem chamava. O Matias e eu falamos ao mesmo tempo: "É a Joaninha!", velha companheira de ginásio, de quem nunca nos afastamos -ela tem uma língua ferina...-, e que foi logo perguntando:
"Quem está com você, Matias?" Ao saber que era eu, deu uma gargalhada, acrescentando: "O assunto é para os dois. Para você, que é fazendeiro, e para o Antônio, que é industrial -ambos doentiamente crentes no futuro deste país."
E continuou: "Estou lendo no jornal que a Reunião Mundial da Fome, realizada em Roma na semana passada, começou com um almoço de arromba, com 170 garçons que serviram aos 3.000 delegados salmão, "foie gras" com kiwi, lagosta ao vinagrete, risoto com laranja, carne de ganso recheada com azeitonas e crepes de cogumelos. Como sobremesa, compotas de frutas de variadas origens. O que vocês acham desse cardápio para começar uma discussão séria sobre a fome no mundo?".
O Matias estava a par do assunto -e muito revoltado. Eu entrei na fossa na hora. Afinal, com um desatino desse calibre, a conferência só poderia fracassar, como, de fato, fracassou.
Depois de uma semana de discussão a respeito da expressão-chave do documento final, os glutões de Roma decidiram excluir a expressão "direito à comida", substituindo-a por "criar condições para que o direito à comida seja garantido".
Foi uma grande conclusão...! Se eles continuarem comendo do jeito que comem em aberturas de eventos, teremos de esperar décadas até que cheguem as "condições" para garantir aquele direito.
O diretor-geral da FAO, o senegalês Jacques Diouf, ao ver tanta falta de bom senso e total ausência de consenso, foi curto e grosso: "Não há solidariedade entre ricos e pobres. Cada país terá de resolver por conta própria o seu problema de fome". Foi o "gran finale" de uma melancólica reunião -só superado pelo "brilho" do fausto almoço de abertura.
Para nós, do Brasil, acrescentei, isso não é novidade nem desesperador. Já produzimos 100 milhões de toneladas de grãos e ultrapassaremos os 110 milhões em 2003.
Nesse ponto, a Joaninha questionou o Matias: "Se as safras são tão abundantes e se a disponibilidade de alimentos per capita entre nós é 60% maior do que a média do mundo, por que se fala em fome no Brasil?".
O Matias, que parecia tão nervoso quanto faminto, disse-nos que "o problema é distributivo" -bonito!-, prometendo explicar a sua teoria em um encontro pessoal.
A conversa estragou nossos planos. Desistimos da "trattoria" e fomos comer uma pizza... -a única maneira que nos restou para compensar a esbórnia de Roma.


Antônio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.


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