São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Alpiste para Enéas

RIO DE JANEIRO - Último vôo da ponte aérea, eu me distraíra com uma amiga e chegara tarde ao aeroporto. Pouca gente, mas mesmo assim surgiu um retardatário, com duas enormes pastas obesas de documentos.
Sem esforço, identifiquei no sujeito barbado, calvo e de óculos o candidato Enéas. Nunca o tinha visto em carnes, ossos e barbas, e verifiquei que o visual conferia com a imagem que vejo na TV durante as campanhas presidenciais.
Não tem secretários que lhe segurem as pastas pejadas de documentos, documentos na certa terríveis, provando tudo o que ele diz e promete, inclusive a necessidade de o Brasil fabricar sua bomba atômica.
Tampouco tem seguranças. Viaja em aviões da carreira, como qualquer mortal ou imortal descapitalizado, como eu. Estava suado, evidente que tivera um dia difícil e teria outro a seguir, levando sua palavra redentora a auditórios problemáticos.
Mesmo assim, garantem os entendidos que ele tem de 2% a 3% do eleitorado. São quase 3 milhões de pessoas que acreditam nele ou, mesmo não acreditando, votarão nele.
Tive uma baita simpatia por ele. Frágil, lembrando no físico o meu finado amigo José Carlos de Oliveira, que o também finado Nelson Rodrigues sempre que o via pensava em lhe dar alpiste na mão, como a um passarinho.
Enéas tem alguma coisa de passarinho. Mas, nos poucos instantes em que pode dar o seu recado na TV, ele se supera, adquire um tom sinistro, ameaçador. Fez de seu nome um programa, um ideário, uma plataforma de reivindicações morais e materiais.
Sua fragilidade física combina com sua fragilidade eleitoral, mas não com a virulência de seu verbo. Observei-o bem. Tive vontade de dar-lhe alpiste, mas não lhe darei o meu voto.



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