São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Contra o foro privilegiado dos políticos

ROBERTO ROMANO

Um problema grave da representação política é a distância que ela gera, no Estado, entre os dirigidos e os líderes. Os últimos se imaginam imunes aos deveres universais. Parece escárnio citar a Carta Magna: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".
Os maiorais da República nunca aceitaram a autonomia do Ministério Público, pois ela assegura que todos os prevaricadores serão punidos.
Muitos políticos tentaram calar a Promotoria e os juízes, com projetos como a Lei da Mordaça, a qual também visava censurar a imprensa. Os donos do Estado brasileiro situam-se acima da lei. Um ministro dos Transportes, pouco tempo atrás, estacionou seu veículo sobre a calçada. Multado, disse não ser "cidadão comum".
Nos primeiros empenhos para dar foro privilegiado aos administradores, um parlamentar confessou que não submeteria sua pessoa a um juiz de instância inferior. Ele se julga excelso o bastante para ser analisado apenas pelo Supremo.
As tentativas para estabelecer o dito foro, ou desaforo, fracassaram até o momento. Mas, na Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou, aproveitando a morfina coletiva da Copa mundial de futebol, o privilégio para autoridades no exercício de função, mandato ou para ex-ocupantes de cargos públicos, como presidente da República, ministros, governadores, senadores, deputados, prefeitos e magistrados. A benesse inclui os crimes comuns, de responsabilidade e improbidade administrativa.
Esta é a essência do projeto de lei 6.295, de 2002, o qual muda o artigo 84 do Código de Processo Penal. Aprovado no dia 28, a liberalidade não necessita ser submetida ao plenário. Em 9 de agosto termina o prazo para recurso, o qual exige 52 assinaturas de parlamentares. Sem tal providência, o texto segue para o Senado e será remetido, para sanção, ao presidente da República. Em vésperas de eleições, uma providência semelhante fortalece a descrença na democracia.
Nas pesquisas de opinião pública, o número dos que mostram saudades dos regimes ditatoriais, com fechamento do Congresso, irá aumentar. O favoritismo de candidatos conservadores, como no caso de São Paulo, testemunha tal insatisfação com a democracia.


Os parlamentares querem recuperar a impunidade. Trata-se de uma inédita subversão dos valores no Estado


Mas essa tragédia não é inelutável.
Até 9 de agosto, os parlamentares podem assinar o mencionado recurso. Caso não o façam, apoiarão um golpe que institui odioso privilégio para suas pessoas ou a de seus pares. A medida hoje proposta desmoraliza a igualdade cidadã. Defendo a imunidade parlamentar. Penso, com Elias Canetti ("Massa e Poder"), que o Parlamento é o espaço produzido para que a guerra social, com suas vinganças, assassinatos, chantagens, seja atenuada. Na tribuna ou em comissões, os representantes do povo precisam de garantias para manter o diálogo no mundo coletivo.
Houve abuso dessa prerrogativa no Congresso. Muitos dela se valeram para delinquir com arrogância ímpar. Aplicada sobre ela um sentido mais civil, os parlamentares querem recuperar a impunidade. Trata-se de uma inédita subversão dos valores no Estado.
Raros políticos costumam ler os autores clássicos da liberdade e da igualdade. Mesmo os pouco apetentes para o pensamento, entretanto, não podem ignorar as doutrinas que fundamentam o Estado democrático de Direito. É preciso fazê-los recordar as advertências de J-J. Rousseau. O governo, diz ele, é só "uma comissão, um emprego, no qual simples funcionários do soberano" e os gestores "exercem em seu nome o poder do qual são depositários e que ele pode limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver".
Se o governo recebe do soberano as ordens que dá ao povo, "para que o Estado esteja num bom equilíbrio, é preciso, tudo compensado, que haja igualdade entre o produto ou a potência do governo tomado em si mesmo e o produto ou a potência dos cidadãos, que são soberanos de um lado e súditos de outro". Os atos que geram mais poder aos governantes e desequilibram a igualdade do Estado destroem a base da política.
Se os dirigentes usam artifícios legais para fugir da igualdade e usurpam o poder soberano, eles diminuem a majestade do Estado e negam a universal força de constrangimento legítimo. Quando os administradores agem assim, "o grande Estado se dissolve, formando-se um outro no seu interior, composto só pelos membros do governo, e que é para o resto do povo apenas seu senhor e seu tirano ("Do Abuso do Governo e de Sua Inclinação para Degenerar')".
No Brasil, a reunião dos políticos que hoje exige para si o estatuto de República autônoma, superior à dos cidadãos, representa pequena minoria. Mas ela causa estragos consideráveis, como neste ensaio para outorgar foro privilegiado aos governantes.
Até 9 de agosto, saberemos se aumentou o número dos cidadãos da república, ou condomínio, particular dos políticos. As oposições e mesmo os que apóiam os dirigentes, mas são democratas, podem afastar o golpe. Caso contrário, em pouco tempo o Brasil será um imenso Espírito Santo, um Estado que prova, de modo cabal, o que significa o privilégio dos administradores, em detrimento dos contribuintes.


Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).



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