São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Contra o foro privilegiado dos políticos
ROBERTO ROMANO
Mas essa tragédia não é inelutável. Até 9 de agosto, os parlamentares podem assinar o mencionado recurso. Caso não o façam, apoiarão um golpe que institui odioso privilégio para suas pessoas ou a de seus pares. A medida hoje proposta desmoraliza a igualdade cidadã. Defendo a imunidade parlamentar. Penso, com Elias Canetti ("Massa e Poder"), que o Parlamento é o espaço produzido para que a guerra social, com suas vinganças, assassinatos, chantagens, seja atenuada. Na tribuna ou em comissões, os representantes do povo precisam de garantias para manter o diálogo no mundo coletivo. Houve abuso dessa prerrogativa no Congresso. Muitos dela se valeram para delinquir com arrogância ímpar. Aplicada sobre ela um sentido mais civil, os parlamentares querem recuperar a impunidade. Trata-se de uma inédita subversão dos valores no Estado. Raros políticos costumam ler os autores clássicos da liberdade e da igualdade. Mesmo os pouco apetentes para o pensamento, entretanto, não podem ignorar as doutrinas que fundamentam o Estado democrático de Direito. É preciso fazê-los recordar as advertências de J-J. Rousseau. O governo, diz ele, é só "uma comissão, um emprego, no qual simples funcionários do soberano" e os gestores "exercem em seu nome o poder do qual são depositários e que ele pode limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver". Se o governo recebe do soberano as ordens que dá ao povo, "para que o Estado esteja num bom equilíbrio, é preciso, tudo compensado, que haja igualdade entre o produto ou a potência do governo tomado em si mesmo e o produto ou a potência dos cidadãos, que são soberanos de um lado e súditos de outro". Os atos que geram mais poder aos governantes e desequilibram a igualdade do Estado destroem a base da política. Se os dirigentes usam artifícios legais para fugir da igualdade e usurpam o poder soberano, eles diminuem a majestade do Estado e negam a universal força de constrangimento legítimo. Quando os administradores agem assim, "o grande Estado se dissolve, formando-se um outro no seu interior, composto só pelos membros do governo, e que é para o resto do povo apenas seu senhor e seu tirano ("Do Abuso do Governo e de Sua Inclinação para Degenerar')". No Brasil, a reunião dos políticos que hoje exige para si o estatuto de República autônoma, superior à dos cidadãos, representa pequena minoria. Mas ela causa estragos consideráveis, como neste ensaio para outorgar foro privilegiado aos governantes. Até 9 de agosto, saberemos se aumentou o número dos cidadãos da república, ou condomínio, particular dos políticos. As oposições e mesmo os que apóiam os dirigentes, mas são democratas, podem afastar o golpe. Caso contrário, em pouco tempo o Brasil será um imenso Espírito Santo, um Estado que prova, de modo cabal, o que significa o privilégio dos administradores, em detrimento dos contribuintes. Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Walter Feldman: Viva São Paulo Índice |
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