São Paulo, quarta-feira, 16 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cota não é sinônimo de ação afirmativa

LEANDRO R. TESSLER

O DEBATE sobre cotas no ensino superior ganhou novos rumos nos últimos dias. Os ministros Tarso Genro (Relações Institucionais) e Fernando Haddad (Educação) passaram a defender cotas sociais em lugar de cotas raciais.


Um programa de ação afirmativa bem fundamentado pode aumentar a qualidade dos nossos alunos


Antes disso, dois manifestos foram encaminhados ao Congresso, um contrário e um favorável à aprovação do projeto de lei nš 73/99, a chamada Lei de Cotas, que, caso aprovado, determinará que 50% das vagas das universidades federais sejam reservadas para egressos de escolas públicas e, entre essas vagas, seja garantida uma proporção igual àquela obtida no último censo do IBGE no Estado para pretos, pardos e indígenas.
Curiosamente, toda a discussão fica centrada na oposição entre uma política de inclusão social universalista (cotas sociais) e uma política focada (cotas étnicas). Governo, a grande maioria das universidades que debatem o assunto e órgãos de imprensa em geral tratam cotas como a única forma possível de ação afirmativa.
Instituir cotas é uma entre muitas possíveis formas de ação afirmativa.
Uma forma ingênua, em desuso há muitos anos nos EUA -o país que criou o conceito de ação afirmativa no ingresso ao ensino superior.
Ação afirmativa não é sinônimo de cotas. Ao contrário do que muitos afirmam, cotas étnicas foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana e são proibidas desde 1976. Ainda assim, muitas das boas universidades americanas adotam com sucesso programas de ação afirmativa até hoje.
Em recente editorial (14/8), esta Folha de S.Paulo reconsiderou sua atitude até então contrária a programas de ação afirmativa e propôs que programas nos moldes do Paais (Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), assumam a proa da discussão, desde que renunciem ao viés racial.
O Paais não renunciou ao viés étnico/racial, mas combinou um bônus de pontos para egressos de escola pública com um bônus extra para egressos de escolas públicas que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas. É lícito que uma instituição de ensino superior decida investir no aumento da diversidade em seu corpo discente. Uma das funções da universidade é formar para a cidadania.
Considerar componentes étnicos certamente não vai resolver o nefasto problema do racismo que permeia a sociedade brasileira. Não se pode esperar que as universidades o façam. No entanto, ao incentivar a diversidade cultural, elas podem proporcionar um ambiente para gerar conhecimento e tolerância que beneficiará a sociedade como um todo.
O Paais é um programa de ação afirmativa sem cotas, criado na Unicamp e adotado desde 2005. Foi planejado a partir de estudo da Comvest (Comissão de Vestibulares da Unicamp), de 2003, que indicou que, uma vez na Unicamp, egressos de escolas públicas, em média, melhoravam seu desempenho acadêmico em relação ao apontado no vestibular.
Assim, preserva três valores universitários fundamentais: autonomia, mérito e inclusão social. O Paais aumenta muito as chances de aprovação dos seus beneficiados sem reservar vaga para ninguém.
Os resultados do Paais em dois anos de existência foram muito positivos. O número de egressos de escolas públicas matriculados na Unicamp aumentou 22%. O número de autodeclarados pretos, pardos e indígenas aumentou 31%. Em 31 dos 56 cursos, os beneficiados pelo Paais apresentam rendimento acadêmico superior ao dos demais estudantes após um ano na universidade. Em 53 cursos (95%), seu desempenho foi melhor do que o mostrado no vestibular em relação aos demais, validando as conclusões do estudo de 2003.
Ao contrário do que muitos imaginam, um programa de ação afirmativa bem fundamentado pode aumentar a qualidade dos nossos alunos.
Isso provavelmente não ocorreria se fossem adotadas cotas, se fossem reservadas vagas para quem quer que seja desconsiderando o mérito. O Paais demonstra também que mérito não é medido apenas pelo desempenho no vestibular; outros parâmetros devem ser considerados para determinar qual a melhor maneira de utilizar os recursos públicos disponibilizados para as universidades públicas.
Impor cotas sociais ou étnicas como a única possibilidade de ação afirmativa é uma solução rápida, fácil e potencialmente desastrosa para o sistema universitário brasileiro. Desqualificar os argumentos pró-cotas e não apresentar uma alternativa melhor é uma saída rápida, fácil e potencialmente desastrosa para o futuro da sociedade brasileira.
A mudança de atitude desta Folha é um exemplo a ser seguido.
LEANDRO R. TESSLER , 44, físico, é coordenador-executivo da Comvest (Comissão de Vestibulares da Unicamp).


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