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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Faltando à Argentina
Dois movimentos positivos
ocorrem na diplomacia brasileira. Um é o esvaziamento parcial do
projeto da Alca: o terreno de negociação demarcado pelos Estados Unidos
e favorável a seus interesses vem sendo substituído por outros terrenos ou
mais específicos ou mais gerais (a
OMC) onde aqueles interesses terão
maior dificuldade em se impor. O outro é a busca de acertos estratégicos
com os demais países continentais em
desenvolvimento. Esse segundo movimento, de enorme significado potencial para o Brasil e para o mundo,
está ainda em seus primórdios. O primeiro passo é lutarem separadamente
os países grandes e marginalizados
por interesses pontuais: cada um por
si. O segundo é atuarem juntos por interesses pontuais compartilhados (como o fim dos subsídios agrícolas). E o
terceiro é lutarem em conjunto para
reformar as regras do jogo econômico
e político internacional. Apenas começamos a dar o segundo passo e a
descobrir sua insuficiência.
Esses dois movimentos certeiros
acontecem, porém, num vazio de debate a respeito de nossa política exterior, sem a âncora indispensável de
projeto interno claro e forte de reconstrução nacional e sob a liderança de
um governo que acaba de demonstrar
sua covardia e sua confusão.
Dizia o cardeal Richelieu que os homens se revelam mais por pequenos
atos do que pelos grandes. Nada mais
revelador da natureza de nossos governantes do que a omissão conivente
do governo brasileiro no enfrentamento da Argentina com o FMI. Excedendo-se na convicção sincera de que
os adversários de antigamente sempre
tiveram razão e apegado à conveniência ilusória de não intranquilizar seus
supostos financiadores, públicos e
privados, no Norte, o governo brasileiro violentou nossos interesses nacionais de duas maneiras distintas.
Em primeiro lugar, porque convergir
e solidarizar-se com a Argentina figuram entre nossos interesses nacionais
mais profundos e duradouros, transcendendo preocupações de comércio
e de conjuntura. E em segundo lugar,
porque, com sua atitude evasiva, negou o governo brasileiro apoio a iniciativa importante para nosso futuro
nacional. O Brasil só pode se afirmar e
se desenvolver numa ordem global
cujas regras econômicas e políticas
abram espaço para rumos nacionais
divergentes. O enfrentamento do FMI
pelo governo Kirchner (enfrentamento agora bem-sucedido, a contragosto
do governo Lula) marcou capítulo no
esforço para construir tal ordem. Desmentiu mais uma vez os que prevêem
apocalipse para quem rejeite o formulário dispensado por Washington e
Wall Street.
Saiba o povo argentino que o acocoramento do governo brasileiro foi visto também no Brasil com indignação e
com nojo. Não meça o compromisso
dos brasileiros para com os argentinos
pelas fraquezas dos homens que transitoriamente ocupam o poder entre
nós. A grandeza da Argentina é a
grandeza do próprio Brasil. Tudo que
a enaltecer, que a libertar dos constrangimentos injustos a que tem sido
submetida e que a ajudar a ficar de pé
entre as nações enaltecerá nosso país.
Que a Argentina releve como aberração o lambe-botas que levou o governo brasileiro a faltar para com ela na
hora em que menos tinha o direito de
fazê-lo. E que os brasileiros se preparem para se livrar, pelo voto, dos que
são mundanos demais para mudar o
mundo.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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