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São Paulo, terça-feira, 16 de setembro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Faltando à Argentina

Dois movimentos positivos ocorrem na diplomacia brasileira. Um é o esvaziamento parcial do projeto da Alca: o terreno de negociação demarcado pelos Estados Unidos e favorável a seus interesses vem sendo substituído por outros terrenos ou mais específicos ou mais gerais (a OMC) onde aqueles interesses terão maior dificuldade em se impor. O outro é a busca de acertos estratégicos com os demais países continentais em desenvolvimento. Esse segundo movimento, de enorme significado potencial para o Brasil e para o mundo, está ainda em seus primórdios. O primeiro passo é lutarem separadamente os países grandes e marginalizados por interesses pontuais: cada um por si. O segundo é atuarem juntos por interesses pontuais compartilhados (como o fim dos subsídios agrícolas). E o terceiro é lutarem em conjunto para reformar as regras do jogo econômico e político internacional. Apenas começamos a dar o segundo passo e a descobrir sua insuficiência.
Esses dois movimentos certeiros acontecem, porém, num vazio de debate a respeito de nossa política exterior, sem a âncora indispensável de projeto interno claro e forte de reconstrução nacional e sob a liderança de um governo que acaba de demonstrar sua covardia e sua confusão.
Dizia o cardeal Richelieu que os homens se revelam mais por pequenos atos do que pelos grandes. Nada mais revelador da natureza de nossos governantes do que a omissão conivente do governo brasileiro no enfrentamento da Argentina com o FMI. Excedendo-se na convicção sincera de que os adversários de antigamente sempre tiveram razão e apegado à conveniência ilusória de não intranquilizar seus supostos financiadores, públicos e privados, no Norte, o governo brasileiro violentou nossos interesses nacionais de duas maneiras distintas. Em primeiro lugar, porque convergir e solidarizar-se com a Argentina figuram entre nossos interesses nacionais mais profundos e duradouros, transcendendo preocupações de comércio e de conjuntura. E em segundo lugar, porque, com sua atitude evasiva, negou o governo brasileiro apoio a iniciativa importante para nosso futuro nacional. O Brasil só pode se afirmar e se desenvolver numa ordem global cujas regras econômicas e políticas abram espaço para rumos nacionais divergentes. O enfrentamento do FMI pelo governo Kirchner (enfrentamento agora bem-sucedido, a contragosto do governo Lula) marcou capítulo no esforço para construir tal ordem. Desmentiu mais uma vez os que prevêem apocalipse para quem rejeite o formulário dispensado por Washington e Wall Street.
Saiba o povo argentino que o acocoramento do governo brasileiro foi visto também no Brasil com indignação e com nojo. Não meça o compromisso dos brasileiros para com os argentinos pelas fraquezas dos homens que transitoriamente ocupam o poder entre nós. A grandeza da Argentina é a grandeza do próprio Brasil. Tudo que a enaltecer, que a libertar dos constrangimentos injustos a que tem sido submetida e que a ajudar a ficar de pé entre as nações enaltecerá nosso país. Que a Argentina releve como aberração o lambe-botas que levou o governo brasileiro a faltar para com ela na hora em que menos tinha o direito de fazê-lo. E que os brasileiros se preparem para se livrar, pelo voto, dos que são mundanos demais para mudar o mundo.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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