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São Paulo, terça-feira, 16 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um novo sistema penal

HÉLIO BICUDO

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa, advogou em recente encontro, onde se debateram problemas penitenciários, a privatização das prisões.
É preciso que se diga, antes de mais, que os EUA, onde a experiência chegou a tomar certo vulto, já começaram, há algum tempo, a revertê-la, tendo em vista que a entrega do sistema penitenciário à iniciativa privada não se coaduna com as finalidades da pena -que não são, em hipótese nenhuma, a produção do trabalho permissivo do lucro, mas, a partir do trabalho, alcançar a ressocialização do detento.
No Brasil, o descalabro em que se encontra o sistema penal não pode ser atribuído tão-somente à prisão mantida pelo Estado, mas, sobretudo, à lastimável deterioração em que se encontra todo o processo de cumprimento da pena.
Temos um Código Penal que ignora os novos desenhos da criminalidade, pois, redigido em 1941, foi alterado para impor penas cada vez mais graves aos agentes que o violam, até o ponto de chegarmos a essa monstruosidade que são os ditos crimes hediondos, cujo elenco aumenta na medida em que determinados delitos sensibilizam os nossos legisladores, inspirados por preconceitos expostos pela mídia eletrônica.
Os delitos de pequena repercussão social, que deveriam -e a própria lei o permite- ser apenados em regime de liberdade, com a imposição de serviços à comunidade, continuam sendo, mesmo porque os juízes não confiam no seu cumprimento, castigados com o confinamento puro e simples em nossos presídios, onde réus primários convivem com plurirreincidentes.


Hoje é pensamento comum que a questão do tratamento do preso é uma só: a sua segregação


Mas a verdade é que o sistema penal brasileiro está falido; falência que começa a se evidenciar quando o princípio da individualização da pena é ignorado por nossos juízes, pois o magistrado que impõe a pena não é aquele que interrogou pessoalmente (não virtualmente) o réu; nem sequer é o mesmo que ouviu vítimas e testemunhas ou acompanhou o desenrolar das provas. Julga-se, sem que se tenha em vista a pessoa a ser julgada, mas apenas papéis reunidos em longos períodos de tempo, circunstância que muitas vezes distorce as conclusões tomadas.
Justiça de primeira instância centralizada nos fóruns, sem alcançar o povo das periferias das grandes cidades, com juízes que, em muitos casos, não residem nas comarcas, presentes, apenas, para atuar burocraticamente; tribunais sediados nas capitais com um ritmo de trabalho incapaz de atender às demandas no tempo e com a eficiência devidas. Imposta a pena -o réu permanece anos preso provisoriamente, até que advenha a sentença final já insuscetível de recurso-, quem vai acompanhá-la não é mais o juiz, mas a administração penitenciária do Estado, que tem diante de si um delinquente que deve ser castigado.
Em liberdade, o egresso não consegue emprego, não pode pagar o pedágio que agentes do Estado impõem, volta a delinquir, num círculo vicioso sem fim.
Hoje é pensamento comum que a questão do tratamento do preso é uma só: a sua segregação. O resto não importa. Constroem-se mais e mais prisões. Esses grandes presídios, onde uma população promíscua se entretém no ócio, divide-se em quadrilhas e dita as próprias regras de comportamento. Em São Paulo, destruiu-se a Casa de Detenção e construiu-se um sem-número de novos Carandirus.
Em vez de pensarmos no recurso à privatização de uma atuação que é própria do Estado, deveríamos partir para uma reforma da polícia, unificada e civil, profissionalizada, atuando permanentemente, a partir do distrito; para um Judiciário mais próximo do povo, atuando nos mesmos módulos de base; em extensão, um pequeno presídio, no qual os réus condenados tenham sua pena acompanhada pelo mesmo juiz que presidiu o processo e determinou a condenação. Nesse sistema não haveria lugar para os juízes de execução, apenas burocratas no exame da situação dos detentos.
Diante do quadro atual, em que não se pensou na prevenção, mas somente na repressão, desde que se tenha uma compreensão realista do problema, poder-se-ia, a pouco e pouco, eliminando a grande prisão, reformando a polícia e o sistema Judiciário, para que a individualização da pena seja realmente um instrumento para a reeducação efetiva do delinquente, chegar a um novo modelo, que propiciasse o encontro da prática com seus fins de Justiça.

Hélio Bicudo, 81, advogado e jornalista, é vice-prefeito do município de São Paulo. Foi presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA.


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