São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A escola e a estrada da informação


O conhecimento deixará de ser monopólio das instituições que têm sido, tradicionalmente, suas zelosas depositárias


GUIOMAR NAMO DE MELLO

Nas sociedades contemporâneas, a informação e o conhecimento se tornam disponíveis a um número cada vez maior e mais diversificado de pessoas. A Internet, rede mundial de informação que torna o hipertexto acessível a um simples toque dos dedos, é a expressão tecnologicamente mais avançada de um processo que há décadas vem se instalando na nossa cultura.
Uma consulta às bancas de revistas e jornais, em cada esquina de nossas cidades, mostra que o hipertexto há muito faz parte do cotidiano urbano. Aí se encontra um mundo divertido, mas caótico, de acesso à informação: dicionários, jogos instrutivos e obras da jardinagem à filosofia, passando por atualidades políticas e científicas, saúde, pornografia, ecologia e outras. Todas a um custo bastante aproximado.
Acrescentem-se o enorme poder informativo e formativo da TV e a possibilidade recente de interação entre os diferentes meios de comunicação para ter uma idéia do caminho aberto pela "auto-estrada" da informação -que só tenderá a se ampliar e a aumentar o número dos que nela navegam.
O avanço da tecnologia da informação vai propiciar uma mudança no paradigma da produção e da divulgação do conhecimento. Não é fácil desenhar com precisão o cenário do futuro, mas uma coisa parece clara: o conhecimento deixará de ser monopólio das instituições que têm sido, tradicionalmente, suas zelosas depositárias. Vale a pena, portanto, fazer um esforço para (res)significar o papel do professor e da escola nesse futuro próximo.
É preciso reconhecer que, para a maioria das crianças que estão nascendo neste final de milênio, a escola não será a única (nem, talvez, a mais legítima) fonte de informações. Isso já está afetando o papel do professor. Ele será cada vez menos um guardião de conceitos e passará a ser um facilitador da integração e da significação, no contexto do ensino, de conhecimentos acessíveis pelos mais diferentes meios.
Essa mudança de papéis atinge o núcleo da missão da escola: reconhecer que não é possível transmitir conhecimentos com a velocidade e a atratividade da multimídia. E privilegiar a constituição de um quadro de referência científico, cultural e ético para selecionar, organizar, dar sentido e levar à prática informação e conhecimento.
Construir sentidos com base no conhecimento poderá ser a tarefa mais nobre da escola na sociedade da informação. Que outra coisa propunham mestres como Dewey, Piaget, Vigotsky, Freinet ou Paulo Freire, para citar apenas alguns, apesar de suas diferenças?
A construção de sentidos na escola terá de ser, cada vez mais, interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar. Projetos de estudo ou trabalho que integram várias disciplinas, tradicionalmente considerados "extracurriculares", deverão tornar-se, mais do que nunca, "curriculares". Essa será uma das estratégias para sintonizar o currículo com o conhecimento contemporâneo, que está ultrapassando as fronteiras disciplinaristas rígidas do paradigma científico legado pelo século 19.
Motivar para aprender requer superar as limitações da transposição didática, levando o aluno a referir o conhecimento escolar ao vivido e observado, de modo espontâneo. Mas essa tarefa terá de levar em conta que o cotidiano dos jovens será cada vez mais complexo e congestionado de informações e conhecimentos quase sempre fragmentados, que não consideram fronteiras nacionais, culturais ou etárias.
Acessar e adquirir conhecimento pode ser um ato solitário. A construção de sentidos implica negociá-los com o outro: familiares, amigos, professores ou interlocutores anônimos dos textos e dos meios de comunicação. Toda negociação de sentidos envolve valores, mas é da educação escolar que a sociedade cobra os valores que considera positivos para as novas gerações.
Por isso, mesmo interativas e formadoras de mentalidades, as tecnologias da informação e da comunicação não dispensam a educação escolar. Desta se espera que prepare os alunos para renegociar os significados veiculados pela mídia, por meio da análise crítica.
Os conteúdos de ensino terão de ser (res)significados como meios e não mais como fins em si mesmos. Deverão visar menos a memorização e mais as capacidades necessárias ao exercício de dar sentido ao mundo: analisar, inferir, prever, resolver problemas, continuar a aprender, adaptar-se às mudanças, trabalhar em equipe, intervir solidariamente na realidade. Não é por acaso que tais competências são as que agregam maior valor ao trabalho e ao exercício da cidadania nas sociedades contemporâneas: os processos produtivos e as práticas sociais também são afetados pela revolução da informação.
Finalmente, é preciso reafirmar a importância da escola na constituição de significados deliberados. Ela parte da experiência espontânea para chegar à sistematização e à abstração, que libertam do espontaneísmo. Significados deliberados permitem identificar o objeto do conhecimento, saber como se aprende, atribuir valores à aplicação do saber e estimular sua expressão. Só eles têm a universalidade dos significados socialmente reconhecidos como verdadeiros: as ciências, os valores de diversidade, igualdade, solidariedade e responsabilidade e a importância das linguagens que os expressam.
Esses objetivos -base da identidade ética e não excludente- são perseguidos pela educação escolar desde que Sócrates associou a sabedoria à virtude. A incapacidade de alcançá-los legitimou condenações ferozes da escola e dos educadores. A tecnologia da informação pode ser uma nova oportunidade de cumprirmos com êxito a missão que nos legaram os grandes pedagogos do passado, expressando o anseio social de uma vida melhor e mais feliz.


Guiomar Namo de Mello, 55, educadora, é diretora-executiva da Fundação Victor Civita e membro do Conselho Nacional de Educação.




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