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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Aborto e lei

CLÁUDIO HUMMES

O aborto constitui-se num tema facilmente suscetível de debates apaixonados, de argumentos movidos por emoções profundas, por sentimentos dramáticos, quando não de origem traumática. Nem podia ser diferente, pois trata-se da supressão de uma vida humana.
Por outro lado, uma gravidez indesejada ou imposta pela violência também pode se tornar motivo de sofrimento, de trauma ou de não-aceitação.



Desde a concepção trata-se de um novo ser humano, que apenas precisa desenvolver o programa genético já presente



Apela-se a presumidos direitos, seja da mãe, seja da criança em gestação. Direitos naturais, direitos humanos, direitos legais adquiridos ou a conquistar. O apelo a direitos não diminui a traumaticidade do assunto, pois vidas humanas estão em jogo e suprimir uma vida humana inocente e indefesa agride qualquer reta consciência.
A Igreja Católica sempre se posicionou firmemente contra o aborto diretamente provocado. Na sua encíclica intitulada "Evangelium Vitae" ("O Evangelho da Vida"), de 1995, João Paulo 2º ensina: "O aborto provocado é a morte deliberada e direta, independentemente da forma como venha a ser realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento" (nº 58). "É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um caráter dramático e doloroso (...) Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente" (nº 58).
Por essa razão, João Paulo 2º diz: "Declaro que o aborto direto, isto é, quisto como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a palavra de Deus escrita, é transmitida pela tradição da igreja e ensinada pelo magistério ordinário e universal" (nº 62).
Essa é uma lei moral que vale para todos os católicos e católicas. Mas, na medida em que é lei natural, vale para todos os seres humanos.
Há quem queira justificar o aborto nos primeiros dias depois da concepção, considerando que aquele pequeno agrupamento de células nada representa de importante. Ao contrário, desde a concepção aquele óvulo fecundado "inaugura uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humano, se não o fosse já desde então. A essa evidência de sempre a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, encontra-se fixado o programa daquilo que será esse ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir" (nº 60).
Portanto desde a concepção trata-se de um novo ser humano, que apenas precisa desenvolver todo o programa genético já presente. Se ele ainda não fosse humano a partir da fecundação, não o seria nunca mais.
Outros, ainda que aceitem tratar-se de um ser humano desde a concepção, querem justificar o aborto provocado porque alegam não se saber quando esse novo ser humano começa a ser pessoa. Devemos responder, com João Paulo 2º: "Como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana?" (nº 57). Aliás, continua o papa, "bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa humana para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano" (nº 57).
Poder-se-ia citar o exemplo do grupo de caçadores na mata, que se dispersa e se esconde à espera de uma caça. Quando um deles, sozinho e escondido, vê as moitas se moverem a certa distância, sem saber se é um companheiro seu que está ali ou um animal, obviamente ele não pode atirar, pois correria o risco de matar uma pessoa humana, e não um animal. Na dúvida se estou diante de uma pessoa humana ou não, não posso matar.
Quanto à elaboração de leis civis referentes ao aborto, vejamos a seguinte afirmação levantada contra a Igreja e outras religiões: "a ordem jurídica em um Estado democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral católica ou da moral de qualquer religião". Essa afirmação subentende uma acusação equivocada de que a igreja está pretendendo impor sua moral aos não-católicos. Essa acusação não procede, pois a igreja não impõe sua moral à sociedade. Mas, assim como qualquer outro grupo ou indivíduo da nossa sociedade pode propor projetos de lei, também a igreja, mediante os expedientes legais em vigor, o pode. Isso é democracia.
A igreja não impõe uma lei à sociedade civil, mas a propõe, e a proposta tem de passar por todas as tramitações democráticas e parlamentares que a legislação do país impõe para que uma proposta se torne lei. A tramitação democrática das leis é garantia da boa convivência social e garantia dos direitos de todos, independentemente de ideologias, interesses de grupos ou crenças.

Dom Cláudio Hummes, 69, é cardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).


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