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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nem tão distante nem tão impossível

TARSO GENRO

O 23º Congresso da Internacional Socialista, que se realizou recentemente em São Paulo, foi uma nova evidência simbólica da crise teórica e política do projeto socialista em escala mundial. Após o fracasso da Revolução Russa e do seu "retrocesso" ao capitalismo (mas que foi um enorme avanço em relação à situação despótica existente até 1917) e após o "revisionismo" radical do PC chinês, o socialismo social-democrata -que não é socialista em sentido estrito- é o único movimento mundial forte como elo dos movimentos políticos de esquerda com a democracia e a República.
A social-democracia combina-se, assim, com os direitos humanos, a defesa das funções públicas do Estado e a sustentação de uma globalização humanizada. Nada diz, porém, sobre a questão do socialismo como forma de organização da sociedade e da produção. E não o faz por um motivo óbvio: a propriedade privada dos meios de produção articula-se diretamente com a democracia representativa clássica, pois a liberdade de adquirir propriedade (como direito subjetivo) é uma conquista cara e recente da revolução burguesa.



Podemos pensar o socialismo como modo de produção ou é possível pensá-lo somente como "idéia reguladora"?



Não creio que fosse possível nem pertinente que os partidos social-democratas se dedicassem a reformatar, num Congresso, um projeto ou uma estratégia vinculados ao socialismo como forma de organização da produção. Do ponto de vista político, é uma questão fora da "ordem do dia" numa sociedade mundial que estimula o consumismo individualista, o egoísmo como virtude e que é carente de qualquer articulação universal de solidariedade. É um momento de "recuo", em que a luta é para reordenar a globalização tutelada pelo capital financeiro, afirmar a democracia assediada pelo tecnocratismo do caminho único e repolitizar a sociedade.
A reflexão teórica que a situação do socialismo social-democrata nos impõe, como um partido que surgiu na crise do socialismo ditatorial e na decadência do contrato social-democrata, é a seguinte: para contribuir com a refundação da idéia democrática, neste país e neste período histórico, podemos trabalhar com as mesmas categorias teóricas do "velho socialismo"? Ou com os mesmos mitos ideológicos do neoliberalismo? Podemos pensar o socialismo como modo de produção ou é possível pensá-lo somente como "idéia reguladora"?
Afirmo que só é possível pensá-lo como idéia reguladora e que precisamos de outro sistema categorial. Enquanto a esquerda não compuser um acordo sobre esse sistema, continuaremos cindidos em nome de um passado cujos projetos na vida real foram malsucedidos.
Por exemplo: a "profissionalização", originária da máquina partidária, oferece a formação suficiente para gerir os impasses técnicos de um Estado complexo? O "taticismo" não deve ser abolido do nosso vocabulário, por ser dotado de uma moral instrumental, contrária à idéia do socialismo democrático?
Resgatar a teoria democrática é, além de reestruturar o pensamento, possibilitar que a democracia viabilize uma contrapartida material na vida das grandes parcelas da população. Estas são sempre suscetíveis -pelas suas dramáticas condições de vida- de serem chamadas a compartilhar de soluções "fáceis", ordinariamente de cunho populista, que só levam ao desastre. E esse é um perigo presente, inclusive nas democracias maduras, como vimos pela votação de Le Pen nas últimas eleições presidenciais francesas.
A idéia do resgate da democracia por meio de um Estado submetido ao controle público e a realização de uma "reforma moral e intelectual" com uma economia dinâmica e socialmente integradora -pela inclusão social, emprego e renda- constituem os pressupostos do "repensar" também a própria social-democracia.
Seria bom que o debate, que se inicia timidamente em nosso meio, se abrisse numa dimensão pública de alto nível, porque isso também tem a ver com o futuro do nosso governo.
O governo venceu a sua primeira fase de afirmação e propõe, como meio organizador do futuro, um "novo contrato social", de caráter radicalmente democrático: uma utopia nem tão distante nem tão impossível, como foram as que fracassaram no século passado.

Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Foi prefeito de Porto Alegre, pelo PT (1993-96 e 2001-02).


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