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JOSÉ SARNEY
Fome e amor
Estamos numa boa briga: o combate à fome. Tema recorrente que,
num horizonte de alguns séculos, não
conseguiremos superar.
Falo do Brasil e do mundo. Abro o
"Mapa Mundial da Fome", editado
pela FAO, cujo lema é "fiat panis". O
número é assustador: "815 milhões de
pessoas passam fome". Um dado
mais chocante ainda: 150 milhões de
crianças abaixo de cinco anos têm alimentação insuficiente. Na Ásia, são
400 milhões de pessoas com fome e,
na África, 200 milhões.
Há dois tipos de países: os de famintos e mal nutridos, com seus territórios sem condições de produzir comida suficiente, como os da África subsaariana; e alguns poucos da América
Latina e da Ásia, que produzem comida em quantidades razoáveis, como a
Índia, a China e Bangladesh, mas que
têm bolsões de fome.
O vencedor do World Food Prize,
Pedro Sanchez, coordenador do Projeto Milênio de Combate à Fome, denuncia sempre a falta de esforços dos
países ricos em encarar o problema. A
ajuda humanitária não é da dimensão
das necessidades.
Eu mesmo, na ONU, disse que a fome é incompatível com um país cristão e democrático.
Há cinco anos, participei, em Xangai, de uma conferência sobre balanço
alimentar no mundo, em que examinamos como estamos nos aproximando rapidamente do desequilíbrio
entre a demanda e a oferta de alimentos. Países como a Etiópia têm de viver à custa de doações, necessitando
de 2 toneladas de grãos para alimentar 11 milhões de pessoas.
Diante desse problema de tantas faces -a maior de todas, a tragédia das
crianças mortas pela fome-, o presidente Lula da Silva mobiliza nossas
consciências num chamamento para
um mutirão generoso de combate a
essa vergonha mundial, que não pode
subsistir num país de tão amplas riquezas e grande capacidade de produzir alimentos como o Brasil.
A boa nova é a fartura de apoios. Todos prontos a ajudar. Tobias Barreto,
em seu "Discurso de Manga de Camisa", dizia que é mais fácil falar aos que
estão de barriga cheia, satisfeitos, do
que aos que têm fome, revoltados.
A luta está em todos os setores. O
presidente do Banco Central, para
que se veja a força da idéia de Lula, na
Suíça, ao falar na obtenção de novas
linhas de crédito, disse que sua contribuição era colocar dinheiro nas mãos
dos que comem muito para que eles
pudessem colocar comida na mesa
dos que não têm o que comer.
Há alguns anos, ao lado de d. Mauro
Morelli -este homem que tem a cara
de uma boa causa, bondosa figura humana e líder dessa luta-, eu viajava à
Nicarágua para uma conferência das
Nações Unidas sobre democracias
restauradas e seus problemas, entre
eles a fome. No mesmo avião, ia um
casal que muito se excedeu na bebida
e na comida, criando problema a bordo. Suspenderam o serviço. A mulher,
então, começou a discutir com o marido, pedindo que ele exigisse bebida e
comida. Trocaram insultos em inglês,
discussão acalorada que perturbava a
todos. Deu-lhe um tapa e eu a ouvi dizer: "Sem comida e sem bebida não
tem amor". Ri um pouco e comentei
com d. Mauro Morelli. Ele acrescentou: "Dr. Sarney, eu fui alfabetizado
em inglês, e o que eles falaram em gíria foi coisa muito mais feia...".
Mas o que guardei, até hoje, foi a
lembrança de que "sem comida não
tem amor".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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