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São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Fome e amor

Estamos numa boa briga: o combate à fome. Tema recorrente que, num horizonte de alguns séculos, não conseguiremos superar.
Falo do Brasil e do mundo. Abro o "Mapa Mundial da Fome", editado pela FAO, cujo lema é "fiat panis". O número é assustador: "815 milhões de pessoas passam fome". Um dado mais chocante ainda: 150 milhões de crianças abaixo de cinco anos têm alimentação insuficiente. Na Ásia, são 400 milhões de pessoas com fome e, na África, 200 milhões.
Há dois tipos de países: os de famintos e mal nutridos, com seus territórios sem condições de produzir comida suficiente, como os da África subsaariana; e alguns poucos da América Latina e da Ásia, que produzem comida em quantidades razoáveis, como a Índia, a China e Bangladesh, mas que têm bolsões de fome.
O vencedor do World Food Prize, Pedro Sanchez, coordenador do Projeto Milênio de Combate à Fome, denuncia sempre a falta de esforços dos países ricos em encarar o problema. A ajuda humanitária não é da dimensão das necessidades.
Eu mesmo, na ONU, disse que a fome é incompatível com um país cristão e democrático.
Há cinco anos, participei, em Xangai, de uma conferência sobre balanço alimentar no mundo, em que examinamos como estamos nos aproximando rapidamente do desequilíbrio entre a demanda e a oferta de alimentos. Países como a Etiópia têm de viver à custa de doações, necessitando de 2 toneladas de grãos para alimentar 11 milhões de pessoas.
Diante desse problema de tantas faces -a maior de todas, a tragédia das crianças mortas pela fome-, o presidente Lula da Silva mobiliza nossas consciências num chamamento para um mutirão generoso de combate a essa vergonha mundial, que não pode subsistir num país de tão amplas riquezas e grande capacidade de produzir alimentos como o Brasil.
A boa nova é a fartura de apoios. Todos prontos a ajudar. Tobias Barreto, em seu "Discurso de Manga de Camisa", dizia que é mais fácil falar aos que estão de barriga cheia, satisfeitos, do que aos que têm fome, revoltados.
A luta está em todos os setores. O presidente do Banco Central, para que se veja a força da idéia de Lula, na Suíça, ao falar na obtenção de novas linhas de crédito, disse que sua contribuição era colocar dinheiro nas mãos dos que comem muito para que eles pudessem colocar comida na mesa dos que não têm o que comer.
Há alguns anos, ao lado de d. Mauro Morelli -este homem que tem a cara de uma boa causa, bondosa figura humana e líder dessa luta-, eu viajava à Nicarágua para uma conferência das Nações Unidas sobre democracias restauradas e seus problemas, entre eles a fome. No mesmo avião, ia um casal que muito se excedeu na bebida e na comida, criando problema a bordo. Suspenderam o serviço. A mulher, então, começou a discutir com o marido, pedindo que ele exigisse bebida e comida. Trocaram insultos em inglês, discussão acalorada que perturbava a todos. Deu-lhe um tapa e eu a ouvi dizer: "Sem comida e sem bebida não tem amor". Ri um pouco e comentei com d. Mauro Morelli. Ele acrescentou: "Dr. Sarney, eu fui alfabetizado em inglês, e o que eles falaram em gíria foi coisa muito mais feia...".
Mas o que guardei, até hoje, foi a lembrança de que "sem comida não tem amor".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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