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São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A volta do dilema: pão ou canhão?

CARLOS DE MEIRA MATTOS

Quando nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira desembarcaram no porto de Nápoles, para participar da Segunda Guerra, leram em muros e paredes a legenda "burro o cannones" (manteiga ou canhão). Esta era a mensagem demagógica de Mussolini, de apelo patriótico, tentando conter o descontentamento do povo italiano com a escassez de alimentos resultante das elevadas despesas militares. Muitos séculos antes, os romanos haviam lançado a famosa mensagem: "Si vis pacem para bellum" (se queres a paz, prepara-te para a guerra). Esta ficou gravada na história como uma lição de sabedoria política.
Agora, em nosso país, voltou à baila o mesmo dilema -paz e guerra- sob a nova versão -fome ou aviões de caça!
Na primeira reunião ministerial do novo governo, um ministro declarou que o governo iria suspender a concorrência para a compra de aviões para reequipar a Força Aérea em benefício do programa prioritário Fome Zero.
A nossa grande imprensa, em vários comentários, artigos e entrevistas, imediatamente mostrou a incoerência dessa declaração, pois não se pode combater a fome com um dinheiro inexistente. A compra dos aviões de caça consta de uma licitação em curso que, se for fechada, proporcionará um financiamento estrangeiro, trazendo benefícios referentes à parte da fabricação no Brasil. E o primeiro desembolso de pagamento estaria previsto para daqui a três anos.
Mas não vamos discutir o aspecto demagógico em que foi colocada essa questão da compra dos aviões, assunto já demais analisado pela imprensa. Queremos ressaltar que de tudo isso resultou num benefício: propiciou a discussão pública sobre um tema pouco tratado -a defesa nacional.
Lemos sobre esse tema, entre outros, os magníficos artigos, nesta Folha, de Cesar Maia, prefeito do Rio de Janeiro, e, no "Estadão", do professor Oliveiros Ferreira. Foi posta em questão a necessidade de nosso país possuir uma força armada compatível com a nossa realidade geopolítica -imensa extensão geográfica, população beirando os 175 milhões, fronteiras terrestres de 15.719 quilômetros, com dez países sul-americanos, fronteira marítima de 7.408 quilômetros, território dos mais ricos em recursos minerais e potencial agropecuário. Por fim, país que já alcançou a posição de uma das principais potências médias do mundo.


Vivemos num mundo convulsionado pelas guerras e ameaças de guerra. Até quando esse clima não nos atingirá?


Não há dúvida de que só preservamos incólume, até hoje, esse enorme patrimônio geopolítico porque, dentro de nossas possibilidades, sempre cuidamos de nossa defesa. Nossas fronteiras atuais não vieram de mão beijada, são fruto de porfiadas lutas, diplomáticas e militares, desde a época colonial. Entre nossos maiores vultos históricos destacam-se Caxias e Rio Branco, forjados na luta pela preservação de nossa integridade territorial. Constitui missão pétrea de governo defender os fundamentos do Estado -soberania, integridade territorial, identidade nacional. Trata-se de missão existencial cuja transcendência supera de muito as variantes ocasionais da política administrativa.
Desde a primeira Constituição imperial até a atual, os deveres essenciais das Forças Armadas estão definidos em conceitos semelhantes, embora com redações diferentes. Todas destacam dois conceitos principais: defesa contra agressões externas e manutenção da ordem constitucional -em caso de incapacidade dos organismos policiais.
Para cumpri-los, nossas Forças Armadas, tradicionalmente, dispuseram seu efetivo e seus recursos bélicos obedecendo a duas servidões -de defesa externa (adensando seus efetivos operacionais nas proximidades das fronteiras mais críticas) e de presença territorial, mantendo pelo menos uma unidade do Exército em cada capital estadual, assegurando, assim, a presença do poder da União em todo o território.
Com a evolução das situações políticas, a rapidez dos meios de transportes e a capacidade das telecomunicações, esse dispositivo tradicional está sujeito a mudanças. Entretanto os dois conceitos essenciais da missão constitucional das Forças Armadas -eficiência operacional para a defesa ou dissuasão militar e poder de presença em qualquer ponto do território- não se alteraram.
Nenhum estadista negará que, hoje, talvez mais do que no passado, precisamos possuir uma força armada eficiente, adequada à nossa importância geopolítica. A situação de relativa paz que desfrutamos agora em nosso continente não nos assegura uma permanência de tranquilidade. Vivemos num mundo convulsionado pelas guerras e ameaças de guerra. Até quando esse clima de hostilidade não nos atingirá?
Nossos estadistas do passado não descuidaram nem da diplomacia nem da força militar, irmãs gêmeas. Assim, herdamos imenso patrimônio geopolítico.
Essa questão política (pão ou força) deixou de ser polêmica para os verdadeiros estadistas desde que a sabedoria dos romanos proclamou: "Si vis pacem para bellum". Eis a visão endossada por nosso maior gênio da diplomacia, o barão do Rio Branco, quando, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, disse: "Se hoje buscamos melhorar as condições de nosso Exército e de nossa Armada, não é porque alimentamos planos de agressão ou de ambiciosa influência sobre os destinos de outros povos. É unicamente porque sentimos a necessidade, que todas as nações previdentes e pundonorosas sentem, de estarmos preparados para a pronta defesa do território, dos direitos e da honra contra possíveis provocações e afrontas".

Carlos de Meira Mattos, 89, general reformado do Exército e veterano da Segunda Guerra Mundial, é doutor em ciência política e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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