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São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Guerra, desilusão e paz

BETTY MILAN

Nas imagens da guerra anunciada só as armas são novas. O resto é repetição. É o militar americano dizendo que entrou no Exército pelas vantagens econômicas. O outro explicando que aderiu para servir à nação como o pai no Vietnã. Um que nasceu pobre e agora vai servir a causa dos ricos -pode morrer por uma causa que não é a dele. Melhor seria desertar. O outro que é pobre de espírito. Está a serviço do ideário belicoso do pai; melhor seria que fosse a ovelha negra da família.
Até quando? Será que Freud explica? Abro o artigo "Idéias sobre a Guerra e a Morte", de 1915. Leio que haverá guerras enquanto as condições de vida das nações forem tão diversas e o valor da vida do indivíduo diferir tanto de uma nação para a outra. Exatamente o que Lula escreveu no "Le Monde": "O combate à exclusão e à miséria é decisivo para vencer o terrorismo e evitar as guerras civis, o luto, em tantas regiões do mundo".
A prática psicanalítica talvez esteja ameaçada de desaparição, o pensamento não. "Idéias sobre a Guerra e a Morte" é a prova da modernidade de Freud, que, além de antecipar o discurso dos políticos de hoje, explica a desilusão diante das imagens da guerra.
Segundo ele, não é preciso ser um sentimental para ficar desiludido com o fato de as grandes nações não encontrarem uma maneira pacifista de acertar os conflitos, sobretudo por serem representantes do progresso tecnológico requerido para controlar as forças da natureza e prolongar a vida. Além de contraditórias, as nações são contrárias a si mesmas .
Não há como conciliar no nosso imaginário o progresso tecnológico com o atraso de vida que a guerra promete. Conciliar não é possível; entender o paradoxo, sim. Ninguém acredita no próprio fim. Temos a convicção inconsciente de que somos imortais -por isso corremos repetidamente o risco de morrer. Uma das provas daquela convicção é o vigor do tabagismo, quando já se sabe que 50% dos fumantes morrem de câncer entre 53 e 69 anos de idade.
Por um lado, nós desacreditamos a nossa morte e, por outro, o inconsciente só sabe punir o crime com a morte, como mostra a expressão "o diabo que te carregue". Noutras palavras, desejamos eliminar o próximo, sem mais nem menos; entregamo-nos ao ódio, sem considerar as consequências nefastas do mesmo. Quer isso dizer que estamos condenados à guerra até o fim dos tempos?


O projeto de pacificação é o que dá mais sentido à existência do político, cuja arte é a de adiar a guerra


Freud responde indiretamente. Afirma, primeiro, que ela não pode ser abolida enquanto as condições de existência das nações forem tão diferentes e a repulsão mútua tão violenta. Deixa passar um fio de esperança. Conclui que devemos nos adaptar à guerra, pois basta pensar na importância atribuída ao mandamento "Não matarás" para deduzir que somos produto de uma série infinita de gerações de assassinos; temos a paixão do crime no sangue.
Apesar do voto esperançoso de justiça que atravessa o texto de 1915, Freud, desiludido, acaba se entregando ao pessimismo. Sabia que as conquistas éticas foram alcançadas ao longo da história; muitas gerações são necessárias para alcançar a mudança e a sua vida terminaria bem antes dela.
Entendo o pessimismo, porque a desilusão de Freud é a dos que são contrários à violência, porém sei que o otimismo é um imperativo. Quem não é otimista não pode se empenhar na pacificação, que tanto implica o uso das riquezas disponíveis para melhorar as condições de vida no planeta quanto a aceitação das diferenças entre os povos.
O projeto de pacificação é o que dá mais sentido à existência do político, cuja arte é a de adiar a guerra. Lula fez o que era necessário para sustá-la, deixando-se nortear pela nossa tradição pacifista. Pode realizar a sua grande obra de educador se veicular durante os quatro anos de governo os valores que sustentou em Porto Alegre e em Davos. Se tiver como meta o ensinamento contínuo da paz para tornar a violência tão inconcebível quanto a fome .
Para isso, ele precisa encontrar multiplicadores do seu discurso, educadores para quem o ensino das disciplinas esteja associado à difusão do ideário que o elegeu, e não à repetição enfadonha dos valores que deixam intocadas as nossas convicções e paixões inconscientes.


Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "O Clarão" e "A Paixão de Lia", entre outros livros.




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