São Paulo, quarta-feira, 17 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fôlego para o Fome Zero

ZILDA ARNS

Começa hoje, em Olinda, e vai até 20/3 a 2ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, sob o tema "A Construção de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional". A Pastoral da Criança participa desse evento.
São 20 anos de compromisso com a construção da cidadania, prevenção de doenças, recuperação de desnutridos, educação popular para o desenvolvimento físico, social, mental, espiritual e cognitivo das crianças menores de seis anos, dentro de seu contexto familiar e comunitário. Contamos com mais de 230 mil voluntários, que atuam nas famílias, acompanhando 1,717 milhão de crianças e 80 mil gestantes pobres, em 34 mil comunidades de cerca de 3.700 municípios do Brasil.
A Pastoral da Criança vai apresentar propostas sobre a segurança alimentar e nutricional durante a conferência. Entre elas, aspectos de nível familiar, como aumento da renda das famílias, utilização dos alimentos regionais, distribuição dos alimentos entre os membros da família, acesso à água tratada e ao saneamento, implementação de programas de hortas domésticas e pomares (com orientação técnica e distribuição de mudas de hortaliças, legumes e árvores frutíferas), educação alimentar obrigatória nos currículos das escolas, promoção de políticas mais amplas de pesquisa, com a valorização maior da Embrapa, implementação da agricultura familiar e outras.


O Fome Zero não deve estar sujeito à política econômica. É hora de mudar esse paradigma


Lembro-me de quando estive representando o Brasil na assembléia da ONU sobre as metas de cúpula para as crianças do mundo, em maio de 2002. Os chefes de Estado dos países em desenvolvimento diziam, insistentemente, que não queriam esmola dos países ricos, e sim abertura de mercado e ajuda para desenvolver sua infra-estrutura, sua educação, sua saúde -acabando, assim, com a fome de seus povos.
O presidente Lula empenhou sua palavra, ao tomar posse, ao dizer que haveria "mudanças" e que considerava a missão de sua vida assegurar a cada brasileiro e brasileira, ao fim de seu mandato, três refeições por dia. Isso significa que o Fome Zero é prioridade do governo, em parceria com a sociedade civil. Todas as pesquisas de opinião demonstram que o Fome Zero é o programa mais conhecido e apoiado pela população. Se o próprio governo não se convencer disso, cometerá um suicídio político. O Fome Zero não deve estar sujeito à política econômica. É hora de mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate à fome e à miséria.
O Fome Zero constituiu, em mais de 2.300 municípios do país, comitês gestores, integrados por nove pessoas, três do poder público, seis da sociedade civil. Erradicar os comitês gestores seria um grave erro, por destruir uma capilaridade popular que fortalece o empoderamento da sociedade civil; por comprovar que, sem gestão estratégica, o governo parece não saber que rumo tomar; por reforçar o poder de prefeitos e vereadores que nem sempre primam pela ética e pela lisura no trato com os recursos públicos. O governo não deve temer a parceria da sociedade civil, representada pelos comitês gestores.
Se os comitês não cuidarem também da gestão do Bolsa-Família e ficarem excluídos do controle dos cadastros das famílias beneficiárias, o governo estará escancarando a porta à corrupção.
Há uma confusão entre os programas Fome Zero e Bolsa-Família que cabe ao governo federal elucidar. Um substitui o outro? Um compete com o outro? No meu entendimento, a prioridade do governo é o Fome Zero. O Bolsa-Família é um programa dentro do Fome Zero, criado para reforçá-lo com as políticas de transferência de renda.
O Fome Zero não pode, porém, ficar restrito ao Bolsa-Família, ou seja, à transferência de renda. Isso seria adotar políticas compensatórias que, a longo prazo, não promoveriam a inclusão social das famílias beneficiárias; ao contrário, reforçariam a dependência delas em relação às políticas públicas. O Bolsa-Família, ao operar transferência de renda, precisa estar combinado com a promoção humana, a reforma agrária e outras políticas estruturantes, sem as quais não reduziremos as desigualdades sociais. Portanto é de suma importância que o governo saiba operar a relação interministerial, de modo que todos os seus ministérios estejam plenamente harmonizados na política de combate à fome e inclusão social.
O Ministério da Saúde, através do SUS, bem coordenado pelo ministro Humberto Costa, está em todos os municípios e se esforça para chegar a cada família. Estabelece e procura chegar à meta do controle social para evitar o desvio de recursos, que já são poucos.
A 2.ª Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional deverá elucidar muitas dúvidas. Com a criação do novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, como ficam os comitês gestores? Qual a relação entre Bolsa-Família e Fome Zero? O Fome Zero fica reduzido a uma secretaria do novo ministério ou segue sendo a prioridade do governo Lula? Apenas as prefeituras terão controle dos cadastros das famílias beneficiárias? As políticas de transferência de renda são um fim em si mesmas ou um meio para reforçar políticas estruturantes? E quando, efetivamente, as políticas estruturantes estarão mostrando os seus efeitos? Quais as metas? Quando a orquestra dos diversos instrumentos contra a fome e a miséria começará a funcionar nos seus diversos níveis: federal, estadual, municipal e comunitário?

Zilda Arns Neumann, 68, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, é conselheira titular da CNBB no Conselho Nacional de Saúde, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e membro do Conselho de Segurança Alimentar.


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