São Paulo, quarta-feira, 17 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma polêmica desfocada

WALTER MUNDELL

Ultimamente todos criticam o Banco Central, acusando-o de ser um dos responsáveis pelo baixo crescimento econômico do país. Ao final de fevereiro, mesmo renomados economistas, bem como alguns jornalistas especializados, atacaram o Banco Central, acusando-o de ter uma visão "conservadora", baseada em modelos importados, que impediria o país de crescer e diminuir as injustiças sociais.
Atualmente atacar o Banco Central é a regra, havendo mesmo quem ache -e não são poucos- que uma inflação "meio alta" é até admissível, desde que o país cresça. Haveria uma caixa-preta, ou uma tal "planilha do Ilan" (ex-diretor do BC que foi um dos responsáveis pela implantação do regime de metas de inflação) que, por desígnios indecifráveis, levaria o BC a determinar uma taxa de juros muito alta, incompatível com o crescimento econômico.
Minha opinião é diversa. Atualmente faço parte de uma minoria que entende que o Banco Central está fazendo um ótimo trabalho. É duro defender pontos de vista opostos aos da maioria, mas entendo que, por divergir, talvez tenha algo a dizer que possa contribuir para que o debate sirva ao interesse da sociedade.


A idéia de que o BC pode, por meio da redução nos juros, induzir a economia ao crescimento é uma visão deslocada da realidade


Em primeiro lugar, o que o BC está fazendo é administrar a taxa de juros de acordo com o regime de metas de inflação. Esse sistema, inquestionavelmente, vem dando resultados altamente satisfatórios no controle da inflação em todos os países onde é empregado, e a maioria dos países o emprega. A acusação de que ele só funciona em países desenvolvidos é falsa. Funciona, e muito bem, nos países emergentes, podendo-se mesmo afirmar que é o de melhor resultado entre todos os já empregados.
A maior vantagem que o regime de metas de inflação traz é a "despolitização" da gestão da moeda e da taxa de juros. Essa "despolitização" é mesmo uma conquista da sociedade, pois em países como o nosso, onde as instituições ainda são relativamente frágeis e propensas a discursos de ruptura, a existência de um quadro estável de regras contribui enormemente para reduzir os riscos associados ao investimento e ao crescimento econômico. O mesmo princípio se aplica às agências reguladoras -hoje, infelizmente, também mal compreendidas. Devemos lembrar ainda que as metas de inflação foram estabelecidas não pelo BC, mas pelo governo, que foi escolhido pela sociedade, em eleições livres.
Precisamos esclarecer de uma vez que a idéia de que o Banco Central pode, por meio da redução nos juros, induzir a economia ao crescimento é uma visão deslocada da realidade. A taxa de juros é o resultado de um somatório de fatores e é muito mais influenciada pela qualidade da política fiscal, pela eficiência do sistema judiciário e pela estabilidade institucional do que pela vontade dos diretores que se sentam à mesa do Comitê de Política Monetária.
Os juros são altos porque o Brasil é um país de risco alto. Porque cobra impostos em demasia, gastando mal o que arrecada. Porque mudou as regras do jogo, em relação à movimentação de capitais, várias vezes ao longo de sua história. Porque entrou em moratória e, incrivelmente, sentiu orgulho disso... O crescimento econômico derivado da oferta monetária excessiva é uma ilusão que logo acaba, assim que a inflação volta e, com ela, a espiral preço-salários.
Dizem também que a taxa de juros deveria cair porque não há inflação de demanda. Ora, não é possível, tecnicamente, separar inflação de demanda de outras inflações, simplesmente porque a inflação é uma só. Não existe "inflação de demanda" ou "inflação de custos" -figuras semânticas utilizadas apenas para o ensino básico de economia. Inflação é um processo de alta nos preços, não importa de onde venha a pressão. Mas sempre é ruim para o processo produtivo, para os investimentos e para o emprego.
É possível aperfeiçoar o atual sistema? Claro que sim, e o BC deve se preocupar em fazê-lo. Podemos adotar um sistema que considere apenas o "núcleo" da inflação ou um sistema de médias móveis, como o da Austrália. Mas abandonar o sistema agora, adotando uma política monetária que "acomode" o crescimento, logo se revelará uma ilusão. Mais uma vez, estaríamos mudando as regras do jogo, como já fizemos inúmeras vezes nos últimos 20 anos.
O caminho para o crescimento econômico passa por uma política fiscal que não puna a produção, pela estabilidade institucional que repouse em um sistema judiciário eficiente e por um ambiente regulatório sólido -o que inclui a independência formal do Banco Central. Além disso, uma melhoria educacional -que apenas iniciamos- já está aumentando nossa produtividade. Mas esses fatores não são mais discutidos; esquecemo-nos deles. O esporte nacional agora, além de criticar a escalação da seleção de futebol -que, aliás, também não me agrada-, é atacar o Banco Central, uma das instituições do Estado que melhor trabalho estão fazendo.

Walter Brasil Mundell, mestre em economia aplicada pela Eaesp-FGV, é vice-presidente de investimentos da Sul América Seguros.


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