São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008

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Bush e o papa

Apoio do presidente americano à bandeira anti-relativista de Bento 16 revela os limites do pensamento conservador

É BEM VINDA a presença das convicções religiosas no debate político? Sim, declarou o presidente George W. Bush nesta quarta-feira, ao receber na Casa Branca o papa Bento 16.
O encontro não marcou apenas uma diplomática sintonia de opiniões entre o mais poderoso líder político mundial e o chefe da Igreja Católica. As figuras de Bush e Bento 16 hoje simbolizam, sem dúvida, o poder alcançado por uma investida que contesta os avanços intelectuais e políticos, até recentemente considerados definitivos, da modernidade.
Uma herança básica do Iluminismo -a que reserva as questões de fé ao âmbito privado de cada indivíduo- vê-se atacada por vários flancos no mundo contemporâneo. O fundamentalismo islâmico, historicamente adverso a qualquer idéia de liberdade de consciência, avança com agressividade na periferia. Provêm do próprio centro do poder mundial, contudo, os sinais de uma reação obscurantista equivalente.
Em seu discurso, o presidente Bush condenou aqueles que "evocam o nome de Deus para justificar atos de terror, assassinato e ódio". Sem dúvida, uma acertada crítica ao terrorismo islâmico. Mas a resposta clássica do Iluminismo aos que matam em nome da religião foi, como se sabe, a de denunciar-lhes o fanatismo e a insanidade. A atitude de Bush, em vez de afastar as idéias religiosas dessa discussão, é a de trazê-las para o seu próprio campo. Trata-se, para o presidente dos Estados Unidos, de enfatizar a mensagem papal de que "Deus é amor".
Como se Torquemada ou Bin Laden não pudessem dizer o mesmo. Qualquer religião, como se sabe, pode ser usada para justificar atos sublimes -ou bombardeios em massa.
Infelizmente, a fé, seja a "nossa" ou a "deles", não é por si só capaz de trazer paz ao mundo; costuma, ao contrário, cercar de intransigência e cegueira conflitos que apenas a razão, a tolerância e o diálogo seriam capazes, quem sabe, de atenuar.
Bush associou-se a Bento 16 em outra bandeira: a da condenação ao relativismo que impregna o mundo contemporâneo. De fato, as delimitações entre o certo e o errado, o falso e o verdadeiro, o justo e o injusto, parecem muitas vezes em declínio atualmente.
Mas o erro do conservadorismo está em julgar que, pela força da autoridade, do dogma e da tradição, pode-se voltar a um estado de obediência acrítica aos decretos de uma instituição humana, e portanto falível, que julga deter o monopólio da verdade.
Os valores humanos universais, que cumpre defender contra o relativismo, não se confundem com os dogmas morais absolutos desta ou daquela religião. Em nome desse absolutismo, massacres se cometem. A herança iluminista preza a crítica, a liberdade de consciência, o exame dos fatos e dos argumentos em discussão. Se o fundamentalismo islâmico se insurge contra isso, o "anti-relativismo" de Bento 16, a que Bush vem apoiar, não lhe opõe resposta real.


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