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Bush e o papa
Apoio do presidente americano à bandeira anti-relativista de Bento 16 revela os limites do pensamento conservador
É BEM VINDA a presença das
convicções religiosas no
debate político? Sim, declarou o presidente George W. Bush nesta quarta-feira, ao
receber na Casa Branca o papa
Bento 16.
O encontro não marcou apenas uma diplomática sintonia de
opiniões entre o mais poderoso
líder político mundial e o chefe
da Igreja Católica. As figuras de
Bush e Bento 16 hoje simbolizam, sem dúvida, o poder alcançado por uma investida que contesta os avanços intelectuais e
políticos, até recentemente considerados definitivos, da modernidade.
Uma herança básica do Iluminismo -a que reserva as questões de fé ao âmbito privado de
cada indivíduo- vê-se atacada
por vários flancos no mundo
contemporâneo. O fundamentalismo islâmico, historicamente
adverso a qualquer idéia de liberdade de consciência, avança com
agressividade na periferia. Provêm do próprio centro do poder
mundial, contudo, os sinais de
uma reação obscurantista equivalente.
Em seu discurso, o presidente
Bush condenou aqueles que
"evocam o nome de Deus para
justificar atos de terror, assassinato e ódio". Sem dúvida, uma
acertada crítica ao terrorismo islâmico. Mas a resposta clássica
do Iluminismo aos que matam
em nome da religião foi, como se
sabe, a de denunciar-lhes o fanatismo e a insanidade. A atitude
de Bush, em vez de afastar as
idéias religiosas dessa discussão,
é a de trazê-las para o seu próprio
campo. Trata-se, para o presidente dos Estados Unidos, de enfatizar a mensagem papal de que
"Deus é amor".
Como se Torquemada ou Bin
Laden não pudessem dizer o
mesmo. Qualquer religião, como
se sabe, pode ser usada para justificar atos sublimes -ou bombardeios em massa.
Infelizmente, a fé, seja a "nossa" ou a "deles", não é por si só
capaz de trazer paz ao mundo;
costuma, ao contrário, cercar de
intransigência e cegueira conflitos que apenas a razão, a tolerância e o diálogo seriam capazes,
quem sabe, de atenuar.
Bush associou-se a Bento 16
em outra bandeira: a da condenação ao relativismo que impregna o mundo contemporâneo. De fato, as delimitações entre o certo e o errado, o falso e o
verdadeiro, o justo e o injusto,
parecem muitas vezes em declínio atualmente.
Mas o erro do conservadorismo está em julgar que, pela força
da autoridade, do dogma e da tradição, pode-se voltar a um estado
de obediência acrítica aos decretos de uma instituição humana, e
portanto falível, que julga deter o
monopólio da verdade.
Os valores humanos universais, que cumpre defender contra o relativismo, não se confundem com os dogmas morais absolutos desta ou daquela religião.
Em nome desse absolutismo,
massacres se cometem. A herança iluminista preza a crítica, a liberdade de consciência, o exame
dos fatos e dos argumentos em
discussão. Se o fundamentalismo islâmico se insurge contra isso, o "anti-relativismo" de Bento
16, a que Bush vem apoiar, não
lhe opõe resposta real.
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