São Paulo, sexta-feira, 17 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um desafio aos presidenciáveis

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Nas duas últimas décadas o Brasil buscou reconstruir os fundamentos da vida democrática em meio aos desafios nascidos das transformações econômicas, políticas e sociais no mundo atual.
Os resultados não foram bons. Dissipando-se as fumaças decorrentes das articulações e dos conflitos políticos, jurídicos e policiais deste momento pré-eleitoral -que, enfatizadas pela imprensa, acabam aparecendo ao eleitor como o lado fundamental da questão nacional-, o que se enxerga de essencial é a fratura entre a relativa liberdade conquistada e a negação dos direitos fundamentais, como emprego, saúde, educação, segurança e proteção à infância, à velhice e às minorias.
Tudo isso é agravado no nosso país pelo processo, até aqui injusto, de globalização e por uma década de abandono das políticas públicas em prol de um modelo monetarista de desenvolvimento, que nos levou à concentração da renda, da terra e da riqueza, à perda do patrimônio nacional e a um crescimento inusitado da nossa dívida e dos nossos juros. Não podemos aceitar a exclusão social como desfecho da contemporaneidade, tampouco a substituição de uma ditadura militar por uma ditadura do capital, que é o que está acontecendo -e muito menos o apequenamento da história de um país continental, como o Brasil.
Nesse panorama é que estão se desenvolvendo as disputas eleitorais, que se decidirão em apenas seis meses; estranhamente, até agora não apareceu nenhum conjunto de propostas que signifiquem um programa para o próximo governo.
A universidade brasileira, guardiã e produtora de saberes e modelos de potenciais de desenvolvimento humano, não pode se omitir em face de tão fragrante desequilíbrio. Um bom exemplo de engajamento acadêmico foi o seminário "A Crise das Políticas Públicas" -que toca o ponto fulcral da delicada situação que vivemos-, realizado no mês passado, em São Paulo, pelo Imae (Instituto Metropolitano de Altos Estudos) e pela UniFMU.
Durante uma semana, conferencistas da altura de Delfim Netto, Aloysio Nunes Ferreira, Aloizio Mercadante, José Goldemberg, Marco Aurélio de Mello, Edevaldo Alves da Silva, Luiz Gonzaga Belluzzo, Sônia Miriam Draibe, José Renato Nalini e vários outros juntaram-se a dezenas de professores e milhares de alunos para debater a questão, chegando a importantes conclusões, tais como:
As políticas públicas constituem o instrumento mais importante para a governabilidade e a correção da distribuição de renda e devem, privilegiando a cidadania, conduzir ao desenvolvimento humano. Para isso é preciso redefinir o papel do Estado, do mercado e da política econômica, que devem ser submetidos ao escrutino democrático, como um instrumento do desenvolvimento;
Não existem, entretanto, políticas públicas sem desenvolvimento econômico. O empresariado nacional, que tem sido desprotegido, e o mercado interno, que tem sido escancarado, são essenciais para um desenvolvimento verdadeiro, com avanço da competitividade de nossa indústria, desde que ciência e tecnologia sejam priorizadas;


Até agora não apareceu nenhum conjunto de propostas que signifique um programa para o próximo governo


São necessárias algumas revoluções: na política de saúde, tirando o SUS do discurso e colocando-o na prática; na política educacional, transformando a educação pública em formação integral e humanística do cidadão; e na política de segurança, como condição fundamental para uma vida civilizada. Essas políticas públicas essenciais devem estar na mão de pessoas com formação, experiência administrativa e vontade política, capazes de se antecipar aos fatos e não somente reagir a eles;
A imprensa deve desempenhar um papel relevante nesse processo de mudança, aprofundando-se na informação de qualidade e descompromissada, com a garantia de sua indispensável liberdade de expressão, mas com responsabilidade das fontes informativas, que devem atuar sem mordaças, porém conscientes do dever de respeitar a privacidade e a intimidade dos indivíduos;
Para alcançar esses objetivos necessita-se do fortalecimento dos partidos políticos, com doutrinas claras, que sejam respeitadas pelo próprio partido. É preciso também mudar o processo de recrutamento intrapartidário de lideranças, para que se possam selecionar dignidades e eficiências, eliminando mediocridades e condutas distorcidas.
Convenhamos que o seminário chegou a uma pauta de discussão diferente do apoucado processo de fulanização e disputas da política brasileira de hoje. Por isso, até para fertilizar uma discussão ideológica e programática, o próximo passo será convidar cada um dos presidenciáveis para discutir esse documento -publicado na Folha de 28/4/ 02- em uma audiência pública no Imae/UniFMU.
Ao assistir ao seminário e redigir suas conclusões, junto com os companheiros do Imae, lembrei-me de trecho de um poema que rascunhei ao ser empossado na Academia Campinense de Letras: "Ganho forças, descanso, bebo desta água, a utopia reacende, pasto e semente, da verdade futura". Este é o papel da universidade crítica e das elites intelectuais do país, cuja atitude de se afastar do processo político pelo desgaste que ele ocasiona é a demonstração de um descompromisso inaceitável.
Se quisermos ter uma verdadeira democracia com liberdade e cidadania, todos devem participar do processo. À academia está reservado o papel de tentar estabelecer uma discussão contínua e informada com aqueles que se propõem a dirigir os nosso destinos e difundir esses resultados para a politização qualitativa dos nossos cidadãos.


José Aristodemo Pinotti, 66, professor titular e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Imae. Foi deputado federal (1994-98), secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp.



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