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São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Desmoralização incapacitadora

Há mais de 20 anos, o país é governado sob a égide da idéia de que só a salvaguarda da confiança financeira nos permitirá recuperar os instrumentos da política econômica, voltar ao crescimento e cuidar do social. O conteúdo do que se entende como exigido pela confiança financeira vem sendo paulatinamente ampliado a ponto de excluir hoje quase tudo o que seria necessário para fincar as bases de crescimento socialmente includente.
Enquanto não conseguirmos destronar essa ideário no Brasil, a nação continuará prostrada. A economia crescerá, em surtos passageiros, quando sobrar liquidez no mundo e vegetará na estagnação quando o capital se retrair.
O primeiro requisito para romper com o dogma que nos asfixia não é, porém, renovar as idéias econômicas que nos orientam. É desfazer os acertos que, com força cada vez maior, corrompem nossa democracia e mantêm o país desinformado, acorrentado, impotente.
Acertos? Em primeiro lugar, acertos dos governos com os partidos políticos, tratados menos como base de apoio do que como claque desprezível, pronta para ser contratada por preço de ocasião. Em segundo lugar, acertos dos governos com os grandes empresários, convencidos de que não se faz negócio de vulto no Brasil sem o beneplácito do governo, aterrorizados, coniventes, calados. Venham discutir conosco seus planos empresariais e não se esqueçam de depositar na caixinha do partido, dirão os governantes aos plutocratas. Nessas conversas ao pé do ouvido, será fácil confundir reconstrução de setores da economia com remanejamento de interesses privados e abrir portas para o aproveitamento partidário e pessoal. Em terceiro lugar, acertos dos governos com a mídia, quase toda ela quebrada e sedenta de publicidade oficial e de financiamento. Como posso ajudá-los?, perguntarão os detentores do poder aos magnatas da mídia. E o resultado do entendimento entre eles logo aparecerá na cooptação da maior parte da imprensa televisiva e escrita, sonegando ao país meios para conhecer a realidade.
Sem reverter essa redução da alta vida política e empresarial no Brasil a um prostíbulo secreto, o país não encontrará alternativa de desenvolvimento com justiça. Se encontrá-la, não conseguirá levar ao poder forças que possam executá-la. Se levá-las ao poder, não terá como evitar que, no governo, elas se frustrem e se percam.
O que fazer? Que a sociedade reivindique e imponha reformas que enfraqueçam o vínculo entre o poder e o dinheiro, financiando com recursos públicos as campanhas eleitorais, limitando a propaganda eleitoral pela televisão a fala de candidato contra fundo branco e obrigando o Estado a abandonar seu hábito de investir o dinheiro dos pobres nos negócios dos ricos. Que os jornalistas, nas ilhas de independência que ainda existem na imprensa brasileira, acendam as luzes e revelem as negociatas que pulularem à base da mistura venenosa do poder público com o interesse privado. Que os procuradores e os juízes não faltem, mais uma vez, à República. E que muitos de nós, cidadãos, nos deixemos sacudir por movimento íntimo de nojo e de indignação que nos permita dar respeito ao país e a nós mesmos. Se ainda não podemos ter esperança, que pelo menos tenhamos vergonha. Envergonhados, ganharemos mais tarde direito e condição de sermos esperançosos.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger



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