São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS E DEBATES

Timor: é só o começo

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS


Uma coisa parece certa: Timor é a primeira vítima da nova Guerra Fria, apenas emergente, entre os Estados Unidos e a China


A CRISE política em Timor, para além de ter colhido de surpresa a maior parte dos observadores, provoca perplexidade e exige, por isso, uma análise menos trivial do que aquela que tem sido veiculada pela comunicação social internacional. Como pode um país que, no final do ano passado, teve eleições municipais consideradas por todos os observadores internacionais como livres, pacíficas e justas, estar mergulhado numa crise de governabilidade? Como pode um país que, há três meses, foi objeto de um elogioso relatório do Banco Mundial, que considerou um êxito a política econômica do governo, passar agora a ser visto por alguns como um Estado falhado?
À medida que se aprofunda a crise em Timor Leste, os fatores que a provocaram vão-se tornando mais evidentes. A interferência da Austrália na fabricação da crise está agora bem documentada e existe há vários anos.
Documentos de política estratégica australiana de 2002 revelam a importância de Timor Leste para a consolidação da posição regional da Austrália e a determinação deste país em salvaguardar a todo custo os seus interesses. Os interesses são econômicos (as reservas de petróleo e gás natural estão calculadas em US$ 30 bilhões) e geomilitares (controlar rotas marítimas e travar a emergência do rival regional: a China).
Desde o início de seu governo, o primeiro-ministro timorense, Mari Alkatiri, um político lúcido, nacionalista, mas não populista, centrou a sua política na defesa dos interesses de Timor, assumindo que eles não precisariam coincidir com os da Austrália. Isso ficou claro desde logo nas negociações sobre a partilha dos recursos do petróleo, em que Alkatiri lutou por maior autonomia de Timor e mais equitativa partilha dos benefícios.
O petróleo e o gás natural têm sido a desgraça dos países pobres. E o David timorense ousou resistir ao Golias australiano, subindo de 20% para 50% a parte que caberia a Timor dos rendimentos dos recursos naturais existentes, procurando transformar e comercializar o gás natural a partir de Timor, e não da Austrália, concedendo direitos de exploração a uma empresa chinesa nos campos de petróleo e gás sob o controle de Dili.
Por outro lado, Alkatiri resistiu às táticas intimidatórias e ao unilateralismo que os australianos parecem ter aprendido com os norte-americanos. Ousou diversificar as suas relações internacionais, conferindo um lugar especial às relações com Portugal -o que foi considerado um ato hostil pela Austrália- e incluindo nelas Brasil, Cuba, Malásia e China.
Por tudo isso, Alkatiri tornou-se um alvo a abater. O fato de se tratar de um governante legitimamente eleito fez com que tal não fosse possível sem destruir a jovem democracia timorense. É isso que está em curso.
Uma interferência externa nunca tem êxito sem aliados internos que ampliem o descontentamento e fomentem a desordem.
Há uma pequena elite descontente, quiçá ressentida por não lhe ter sido dado acesso aos fundos do petróleo.
Há a Igreja Católica, que, depois de ter tido um papel meritório na luta pela independência, não hesitou em pôr os seus interesses acima dos interesses da jovem democracia timorense ao provocar a desestabilização política com as vigílias de 2005 só porque o governo decidiu tornar facultativo o ensino da religião nas escolas.
E há, claro, Ramos Horta, Nobel da Paz, político de ambições desmedidas, totalmente alinhado com a Austrália e os EUA e que, por essa razão, sabe não ter hoje o apoio do resto da região para a sua candidatura a secretário-geral da ONU. Foi ele o responsável pela passividade chocante da CPLP (Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa) nessa crise.
A tragédia de Ramos Horta é que nunca será um governante eleito pelo povo, ao menos enquanto não afastar totalmente Mari Alkatiri. Para isso, é preciso transformar o conflito político num conflito jurídico, convertendo eventuais erros políticos em crimes e contar com o zelo de um procurador-geral para produzir a acusação.
Daí que as organizações de direitos humanos, que tão alto ergueram a voz em defesa da democracia de Timor, tenham agora uma missão muito concreta a cumprir: conseguir bons advogados para Mari Alkatiri e financiar as despesas com a sua defesa.
E que dizer de Xanana Gusmão? Foi um bom guerrilheiro e é um mau presidente. Cada século não produz mais que um Nelson Mandela. Ao ameaçar renunciar, criou um cenário de golpe de Estado constitucional, um atentado direto à democracia pela qual tanto lutou. Um homem doente e mal aconselhado, corre o risco de hipotecar o crédito que ainda tem com o povo para abrir caminho a um processo que acabará por destruí-lo.
Timor não é o Haiti dos australianos, mas, se vier a sê-lo, a culpa não será dos timorenses. Uma coisa parece certa: Timor é a primeira vítima da nova Guerra Fria, apenas emergente, entre os EUA e a China. O sofrimento vai continuar.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS , 65, sociólogo português, é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Escreveu, entre outros livros, "A Crítica da Razão Indolente" (Cortez).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Ana Clara Schenberg e Consuelo de Castro: A revolução do talento

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.