São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 2006

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A revolução do talento

ANA CLARA SCHENBERG e CONSUELO DE CASTRO


Mais que transmissão de conhecimento acumulado, educação é sentimento do mundo, ciência é intuição, arte é criatividade


A EDUCAÇÃO pública já é obsessão nacional, conforme previu Anísio Teixeira, precursor entre nós de quase tudo o que de importante se pensou sobre o assunto. A se realizar o que anunciam candidatos e iniciativa privada, em alguns anos, o analfabetismo será erradicado, as crianças terão ensino de qualidade e os professores, formação e salário dignos. Para um país em que 50,9 mil escolas dispõem de uma só sala de aula, 34,6 mil não têm rede elétrica e 16,8 mil não têm nem mesmo banheiro, mais que promessa de revolução ou milagre, o anúncio parece uma forma de loucura.
Porém, como diz o professor Antonio Candido, "a loucura de hoje é a razão do futuro", de modo que aderimos à utopia agregando outra: incluir o ensino obrigatório de artes, ciências e tecnologia à grade curricular a partir de seleção vocacional instalada em toda a rede, para que as crianças possam expressar e desenvolver vocações do primeiro ano do ensino fundamental ao último ano do ensino médio.
Não temos programa de inclusão cultural. Os que se apresentam são impermanentes, fragmentários e, nas artes, tratados como lazer, logo, questionáveis quanto a prioridades. A Lei Rouanet não abrange a área nem contempla ciência e tecnologia, o que não impediu a Cia. Vale do Rio Doce de doar significante aporte à pesquisa de biotecnologia da USP.
Por garra ou solidariedade sucedem-se ações públicas, privadas, comunitárias: museu do inconsciente, bandas, balés, corais, concursos.
O demente Bispo do Rosário brilha nos museus do mundo. A Orquestra Filarmônica do Acre transforma crianças de risco em músicos. Sem-tetos montam uma biblioteca nos porões de um edifício ocupado. O "Artesanato Brasil com Design", da Caixa, ilumina grotões, as Olimpíadas da Matemática e o Pré-Iniciação Científica, da USP, se dispõem a revelar talentos adolescentes.
Mas, por quanto tempo? Se até os Cieps e Ceus, implementados com recursos públicos e consagrados pelo uso da população, oscilam sob contingências políticas?
Cabe sustentar gestões que lidam tão intimamente com sonhos e projetos de vida e sustar as que se diluíram.
Com freqüência, programas são massivamente ministrados sem avaliar qualidades de iniciantes e iniciadores, despossuindo-se o despossuído também do direito de aprimorar o pendor que tem, como ser original e único que é.
A postura acrítica sugere perversas indagações: teriam os miseráveis uma alma, se não a tinham seus antepassados negros e índios? E se a têm, seria essa alma individual ou manada anímica que não requer prática nem habilidade fora de palanques e planos de marketing institucional? Ao "estorvo histórico", o "resgate da cidadania". Eis o ato falho que denuncia o estigma. Não se resgata o que não foi dado.
Há que resgatar o sentido da educação, da ciência e da arte. Mais que transmissão de conhecimento acumulado, educação é sentimento do mundo, ciência é intuição, arte é criatividade, e todas são um só processo para o qual é preciso educar o educador, ele também tratado como coisa ou peça de senzala, ganhando em média 300 reais mensais.
É esse o quadro que esperamos que seja revertido pelos empresários ora mobilizados e os candidatos em campanha, quando eleitos. Que a democracia saia do discurso para entrar na história pessoal de todos os brasileiros. Só o talento subverte a distribuição de renda que distribui os destinos de cada um.

ANA CLARA G. SCHENBERG , bióloga, é professora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Foi coordenadora da Divisão de Assuntos Científicos e Tecnológicos da Convenção da Biodiversidade das Nações Unidas.
CONSUELO DE CASTRO , dramaturga, é autora de "Only You", "Caminho de Volta" e da coletânea "Urgência e Ruptura" (Perspectiva).


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