São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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DIREITO A NÃO TER DOR

"O alívio da dor deveria ser incluído entre os direitos humanos". Foi com essa frase de efeito que a ONU e a Associação Internacional para o Estudo da Dor (Iasp) lançaram na semana passada uma campanha mundial para tentar atenuar os sintomas de dores, problema que está longe de poder ser considerado desimportante.
De acordo com estatísticas recentes da Iasp, 20% da população do planeta sofre dores crônicas moderadas ou severas. Uma em cada três pessoas sobre o globo perdeu ou teve diminuída sua capacidade de levar uma vida independente devido a dores. Como os efeitos da dor interferem em esferas como sono, vida social, relações sexuais, 25% dos que padecem de algias crônicas se queixam também de problemas no relacionamento com amigos e familiares. São tantos os aspectos e o alcance do tema que especialistas defendem tratar a dor crônica não mais como um mero sintoma, mas, sim, como uma doença autônoma.
Apesar de a farmacologia oferecer amplo arsenal para controlar a dor (sem mencionar os tratamentos cirúrgicos), muitos pacientes, especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, ainda são forçados a conviver com ela. São várias as razões para o paradoxo. Elas vão desde situações prosaicas, como a burocracia para prescrever medicamentos de uso controlado, até fatores como a subjetividade da dor.
É inquestionável, porém, o fato de que o brasileiro sente bem mais dor do que seria necessário. Uma das bases para essa avaliação está nos reduzidos índices de utilização de morfina no país. Nos EUA, o consumo per capita desse poderoso e barato analgésico é 17 vezes maior do que no Brasil. No Reino Unido, 11 vezes. A diferença é significativa mesmo em relação a outros países em desenvolvimento. Os brasileiros consomem apenas a metade da morfina utilizada pelos sul-africanos.
Há várias frentes de atuação para avançar na redução da dor. É preciso, por exemplo, ampliar a oferta de analgésicos na rede pública bem como diminuir a burocracia para obtê-las. É também fundamental incentivar uma política nacional de cuidados paliativos, que ofereça medicamentos, treinamento e diretrizes para que hospitais lidem com a dor.
Outro aspecto que merece atenção é a formação dos médicos. Nem sempre o profissional de saúde dá o devido valor às queixas de pacientes e poucas vezes consegue acompanhar os rápidos avanços no campo da analgesia. Pior, essa é uma área na qual antigos preconceitos sobrevivem. É ainda freqüente, por exemplo, o argumento de que, devido aos riscos da dependência, não se devem prescrever opióides, como morfina, mesmo a pacientes terminais.
A medicina ainda é impotente diante de muitas doenças, mas isso não significa que ela não seja capaz de diminuir a dor, conferir mais qualidade de vida aos que sofrem e dignidade na hora da morte. É de esperar que o Brasil evolua nesse sentido.


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