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São Paulo, sábado, 18 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Vigias devem portar armas de fogo?

NÃO

O necessário adeus às armas

CARLOS MIGUEL AIDAR

A violência no Brasil precisa ser combatida, preliminarmente, em suas causas estruturais, a partir da mudança da perversa equação da distribuição de renda. Feita a ressalva, não há como deixar de constatar que, nos últimos anos, o Estado não tem sido capaz de evitar a criminalidade crescente em todos os espaços nacionais. E, por conta de deficiências do aparelho policial, um gigantesco exército de vigilantes privados se estabeleceu, ocupando espaços privados e públicos, sendo um dos fatores do aumento da criminalidade.
Os dados mostram a terrível realidade: só em São Paulo, há cerca de 400 mil vigilantes privados e 120 mil policiais, numa proporção de mais de 3 por 1.
Atualmente, parcela significativa dos policiais exerce algum trabalho remunerado fora da PM, sendo, às vezes, a atividade policial secundária em relação ao chamado "bico". Pois bem: dados da polícia mostram que, entre 1990 e 1998, cerca de 23% das mortes dos policiais militares ocorreram quando o policial estava de serviço e que 77% delas ocorreram quando os policiais estavam de folga, geralmente exercendo uma segunda profissão. Se isso acontece com policiais treinados, o que podemos esperar de vigias de rua armados?
A conclusão não pode ser mais evidente: a vigilância armada é um pavio aceso. E por que isso ocorre? Primeiro, por conta da própria cultura da vigilância. As exigências são mínimas: bons antecedentes, porte de arma, aulas elementares de legislação e tiro. A lei estadual que deseja armar os vigias não amplia os requisitos da lei federal 7.102, que dispõe sobre segurança em estabelecimentos financeiros. Numa sociedade que se arma intensamente, a rede de segurança privada acaba se tornando mais um sistema capaz de alimentar a violência -em vez de solucioná-la.
Sem dúvida, mais segurança constitui um dos pleitos mais recorrentes dos brasileiros, chegando, nas regiões metropolitanas, a ocupar o primeiro lugar entre as demandas da população. Para quem duvida, agora há pesquisas para mensurar o "índice do medo" nas grandes cidades brasileiras. Metade da população de São Paulo, por exemplo, considera que pode ser vítima de um crime. Se formos examinar a moldura de violência, em nosso país, chegaremos facilmente à conclusão de que, ao lado da Colômbia, ocupamos a triste posição de uma das nações mais violentas não só do nosso continente mas também do planeta. O próprio IBGE aponta São Paulo como o Estado com maior percentual de mortes violentas do Brasil. No entanto armar parcela da população não será a resposta ideal para reduzir os índices de violência.
Compete ao Estado aplicar a lei, reprimindo o crime. Quando isso não ocorre de modo eficaz, a população vivencia uma sensação de anomia e impunidade, que aflige, sobretudo, as comunidades vitimadas. Coloca-se, assim, em risco a solidez do Estado democrático de Direito, pois a sociedade não pode desfrutar de seus direitos básicos: direito à vida e à propriedade. Alguns buscam a alternativa da segurança privada e descobrem, depois, que a questão da segurança não pode ser resolvida individualmente.
Há muito, vimos nos batendo pela necessidade de restringir o comércio legal de armas a partir da adesão espontânea da população ao desarmamento. Portanto, se o porte de arma for permitido aos vigias de rua de São Paulo, estaremos contribuindo para educar em sentido inverso, incrementando a violência. As armas, como já ficou comprovado, são inúteis para a autodefesa, visto que, na quase totalidade das vezes, seu usuário está despreparado para o ataque. Servem, no fim, apenas para aumentar o arsenal nas mãos dos delinquentes e criminosos, além de criar uma sociedade mais beligerante.
Diante dessa dura radiografia, não resta dúvida: abrir a legislação para permitir que vigilantes de rua possam fazer uso mais constante do gatilho é querer transformar o espaço público em terra da barbárie. Se tivéssemos um sistema educacional avançado, vigilantes altamente qualificados, quadros policiais motivados e ganhando salários condignos, não teríamos o aumento da criminalidade, o incremento do medo entre a população e obsolescência das estruturas de segurança.
Temos, portanto, mudanças importantes para realizar na tentativa de reduzir a criminalidade -sem armar ainda mais a população civil. Uma regra de ouro para reduzir a violência é, sem dúvida, a certeza da punição. Por isso temos expectativa positiva de que o novo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, consiga levar adiante um programa profundo de reforma do Judiciário, que transforme a realidade brasileira. No mundo globalizado, onde o crime organizado, a corrupção e o terrorismo ganharam dimensões inusitadas, os delitos se tornaram mais complexos, e a aplicação da lei necessita ser mais ágil para evitar a impunidade e a perpetuação do crime. Porém, na Justiça brasileira, as ações caminham vagarosamente, demandando anos até as sentenças finais, em decorrência de vários fatores, dos quais destaco três: o formalismo processual, o excesso de leis e a ausência de meios alternativos de Justiça. Combatendo essas três mazelas, estaremos dando um grande passo para reduzir a criminalidade em todas as ruas do país -sem precisar armar os vigias.


Carlos Miguel Aidar, 54, é presidente da seccional paulista da OAB.


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