São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mistificações no caso Garoto-Nestlé

GERSON CAMATA

Seria natural esperar reações emocionais de quem, de repente, se sentiu ameaçado da perda do emprego, após a decisão do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) de cancelar a compra da Garoto pela Nestlé, dois anos depois de sua realização. Afinal, os tempos não estão bons. O desemprego aumentou, o espetáculo por enquanto é outro, não o do crescimento, e o corte radical determinado pelo Cade criou uma sensação de insegurança e tensão entre os 3.000 empregados da Garoto e a população de Vila Velha.
Mas não se deveria esperar que surgissem reações emocionais exatamente da parte de quem, por dever de ofício e responsabilidade no debate público, tem a obrigação de se manter sereno, equilibrado, principalmente contribuindo para encontrar soluções que atendam aos interesses econômicos e sociais envolvidos e ao mesmo tempo reforcem os princípios da defesa da concorrência, pelos quais tanto se empenha, acertadamente, o governo federal.
Esse caso Garoto-Nestlé não pode se perder pelo emocionalismo. Não é sensato imaginar que o Senado e a Câmara, por exemplo, estivessem adotando medidas expiatórias e quase vingativas, como se chegou a dizer, pelo fato de representantes do Espírito Santo terem se tornado porta-vozes das tensões e ansiedades provocadas no Estado pela decisão do Cade.


Se há uma instituição soberana nessa discussão, não é o Cade; é o Congresso Nacional


Não adianta apenas reconhecer que são legítimos os interesses das empresas, dos trabalhadores e do Estado do Espírito Santo. É preciso entender, também, que, se há uma instituição soberana nessa discussão, não é o Cade; é o Congresso Nacional. O Cade desfaz negócios. O Congresso destitui presidentes. Se, num regime democrático, não são os políticos a levantar a voz, quer tenham ou não razão, quem mais falaria? De onde vem pretensão de poder tão discricionário que não poderia ser questionado? É arroubo autoritário considerar tentativa de intimidação a reação de políticos a uma decisão que mexe com a vida de milhares de trabalhadores e agride profundamente a economia de uma unidade da Federação.
Essa é uma das mistificações que a emoção do debate acabou criando. Tenta-se construir a imagem de um Cade com poderes imperiais, acima de tudo e de todos, e com isso se cria a falsa imagem de que os críticos eventuais de suas decisões automaticamente estariam contra a instituição. Ninguém de bom senso, muito menos os políticos do Espírito Santo e as empresas diretamente envolvidas, está contra o Cade. Todos o querem como uma instituição forte e cada vez mais habilitada a arbitrar conflitos de mercado. Tampouco há insanos que ousem atacar os princípios básicos e sagrados de defesa de uma concorrência livre e sadia, aceitos universalmente. O pedestal dessa mistificação é a balela de que a revisão eventual de uma decisão do Cade seria a sua própria desmoralização. Ora, a Justiça revê freqüentemente as suas decisões e nem por isso é desmoralizada. Ao contrário, as revisões, com a confirmação ou correção de decisões e sentenças, fortalecem-na. Há mecanismos legais de revisão de decisões do Cade, já usados em episódios anteriores, sem que o organismo tenha sido desmoralizado.
Não sejamos infantis a ponto de ignorar que o viés corporativista da argumentação de alguns debatedores, no fundo, está jogando uma nuvem de fumaça para esconder questões mais relevantes. O problema não está no Cade como instituição e muito menos nos princípios sagrados da livre concorrência. Está no processo que conduz às decisões do Cade. Temos princípios de Primeiro Mundo defendidos, principalmente agora, como bandeira para justificar a decisão do caso Garoto-Nestlé, mas temos também, em contraponto, um rito primitivo.
Na Europa e nos EUA, antes da compra de uma empresa ou de uma fusão, há obrigação de consulta ao organismo governamental de defesa da concorrência. No Brasil, as empresas são obrigadas a comunicar a operação até 15 dias depois de concretizada. O rito que se segue nos dois casos é absolutamente contrastante. Na Europa e nos EUA, as empresas passam a ter interesse em fornecer o máximo de informações no menor prazo, sempre com possibilidade aberta de negociação. No Brasil, feito o negócio, o processo se arrasta em três áreas diferentes, Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), SDE (Secretaria de Direito Econômico) e Cade, sem chance de negociação.
É absolutamente inevitável, portanto, que no momento da decisão do Cade haja situações empresariais e econômicas já constituídas com vigor e com amplas e conhecidas repercussões sociais, como é o caso Garoto-Nestlé. É comum, mesmo no Brasil, dar às empresas a oportunidade de aprovação do negócio com restrições, hipótese até agora injustamente negada no caso Garoto-Nestlé.
Essas distorções do modelo não estimulam os investimentos para gerar crescimento, emprego e distribuição de renda. E não respeitam os fundamentos constitucionais da relação da União com os Estados, pois o único interesse nacional em jogo nessa disputa globalizada entre três multinacionais -uma aliança de americanos e ingleses contra os suíços- são os interesses dos trabalhadores capixabas e da economia do Espírito Santo. Diante do abuso de poder, do intervencionismo inopinado e descabido, cabe ao Congresso Nacional, em particular ao Senado, que aprova a indicação dos membros do Cade, reequilibrar essa relação entre o órgão da União e o Estado do Espírito Santo.

Gerson Camata, 62, economista e jornalista, é senador pelo PMDB-ES. Foi governador do Espírito Santo (1983-86).


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