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Juízo: os adolescentes exigem da Justiça
EDUARDO REZENDE MELO
"Juízo" é uma dura crítica ao abandono e à falta de valorização a que é relegada a Justiça da Infância e da Juventude neste país
NOVEMBRO de 1989, 200 anos
depois da Revolução Francesa, finalmente crianças e adolescentes tornam-se cidadãs. Ficava
claro que não era suficiente a generalidade da proteção de direitos humanos para que crianças e adolescentes
fossem respeitados. Era hora de equacionar as relações de poder de cunho
geracional.
Foi uma ruptura histórica. Não se
poderia mais aceitar supostas ações
protetivas de adultos que, em nome
de valores os mais diversos, outorgavam-se poderes e permitiam-se ações
sobre crianças e adolescentes que jamais admitiriam se praticadas em relação a si próprios. Era preciso que
crianças e adolescentes fossem vistos
socialmente, como atores sociais, como sujeitos de direitos, sobretudo de
participação na tomada de decisão
dos assuntos que lhes concerniam.
Pouco mais de 18 anos se passaram
daquela data histórica, tempo suficiente para que pudéssemos crer ter
atingido a maioridade de uma cultura
de respeito e dignidade a crianças e
adolescentes pelo mundo. Afinal, nenhuma outra norma internacional relativa a direitos humanos alcançara
ratificação tão extensa.
Ledo engano. "Juízo", documentário da diretora Maria Augusta Ramos,
traz um desalentador retrato não apenas de certa cultura judicial deste
país, mas sobretudo das instituições
que deveriam estar voltadas à garantia de direitos humanos de crianças e
adolescentes.
Durante pouco menos de duas horas, tem-se uma sucessão de situações
que causariam horror a qualquer jurista -a qualquer pessoa sensata, diria-, especialmente se relacionadas a
um adulto. No entanto, tudo parece
justificar-se, em maior ou menor medida, a magistrados, promotores de
Justiça e defensores do filme por terem à frente... apenas adolescentes!
Em nome de uma suposta ação educativa para trazê-los à razão, esquecem-se do principal: o exercício de
um papel institucional que deveria se
pautar pela garantia de direitos e pelo
respeito às liberdades fundamentais.
Desconsideram que a verdadeira educação, nos próprios termos da convenção, não tem senão esses mesmos
objetivos.
É nesse ponto que o filme mostra
seus limites. Focado em alguns poucos operadores do direito, deixa de lado o contexto institucional e cultural
em que se inserem.
A despeito de ações várias da sociedade civil denunciando a falta de formação específica desses profissionais
para lidar com crianças e adolescentes, vê-se que o direito da criança e do
adolescente é considerado disciplina
"menor", como "menores" são vistos
os profissionais que atuam na área.
Raras são as faculdades de direito
do país que contemplam em seus currículos a matéria -nem como optativa, muito menos como obrigatória.
Quando esses profissionais prestam concursos de ingresso às carreiras jurídicas, quantas não deixam de
questioná-los sobre conhecimentos
específicos na área. Sem preparo, são
lançados a lidar com processos envolvendo questões tormentosas, individuais e sociais, faltando-lhes não apenas uma visão holística e interdisciplinar como referenciais de ação sistêmicas que lhes permitam efetivamente a garantia de direitos.
"Juízo" representa uma dura crítica ao abandono e à falta de valorização a que é relegada a Justiça da Infância e da Juventude neste país.
Como vilão neste filme não é apenas a Justiça, ele põe em xeque ainda
muito mais: a capacidade da sociedade civil e do poder público de questionar o modo de funcionamento do que
deveria ser um sistema de garantia de
direitos, como a própria abertura da
Justiça e das demais instituições às
críticas que lhes sejam feitas.
A Justiça da Infância e da Juventude tem por missão, constitucionalmente, a defesa e a garantia de direitos humanos individuais e sociais de
crianças e adolescentes e de suas famílias e já foi capaz de demonstrar
sua capacidade vanguardista no cumprimento de suas ações neste país.
Se o Brasil é reconhecido mundialmente pela qualidade de sua legislação e pela força de suas instituições,
isso se deve em muito à ação articulada e integrada de magistrados, promotores de Justiça e advogados comprometidos com uma perspectiva garantidora de direitos.
Não por outra razão, é a única área
em que juízes e promotores -e defensores, talvez, agora- conseguem superar diferenças e se associam por
uma causa comum, que passa continuamente por uma busca de aprimoramento e reordenamento institucional para cumprimento de sua missão.
"Juízo" é um retrato daquilo que
não podemos nem queremos ser, é a
fala calada de adolescentes a exigir
realmente de nós, magistrados, promotores de Justiça e defensores públicos, mas também de toda a sociedade... justiça.
EDUARDO REZENDE MELO, 39, juiz de direito de São
Caetano do Sul (SP), é vice-presidente da ABMP (Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça
da Infância e da Juventude).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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