São Paulo, quinta, 18 de junho de 1998

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Um país que pagava bem os médicos...



Em vez de nos preocupar tanto com o "managed care", deveríamos exigir que o nosso SUS funcionasse bem
VICENTE AMATO NETO e
JACYR PASTERNAK

Era uma vez, há muitos e muitos anos, um país que pagava bem seus médicos e, talvez, pelo que foi visto depois, bem demais. Os médicos dessa utopia haviam conseguido controlar o número de novos doutores que se formavam, garantindo que não havia excesso de oferta de profissionais. Recebiam por serviços prestados, o que tornava muito interessante oferecer o máximo de procedimentos.
Também nessa nação, especialistas que executavam tarefas complicadas e cirurgias mais complexas acabavam sendo satisfatoriamente pagos. O país era, e ainda é, muito rico, de modo que, por muito tempo, não reclamou dos aumentos sucessivos do custo da medicina. A maioria dos empregadores oferecia planos de saúde que garantiam os pagamentos dos preços sem discussões. Havia uma margem de lucro bastante boa. Sobrava para todos.
Não existia nenhuma preocupação com os que não possuíam seguro-saúde ou estavam desempregados. A maioria dos cidadãos era de classe média. Outros recebiam cuidados em hospitais universitários, que cobravam dos que tinham. Tudo funcionava bem.
Então o panorama começou a mudar. O conto de fadas terminou.
Nos ricos EUA, a mudança se deu nos últimos anos: 30% da população não tem seguro-saúde, apareceram imigrantes ilegais, que trabalham com "bicos", e a pobreza cresceu, dando aspectos "brasílicos" a um contingente que era 90% de classe média.
A concorrência entre as organizações que dão assistência médica, e são muitas, fez com que a margem de lucro caísse muito, de tal modo que elas não suportassem o progressivo aumento dos custos da medicina.
Pior do que isso, procedimentos ainda experimentais são exigidos por um público acostumado à divulgação de milagres médicos pela imprensa leiga, que tem grande dificuldade de entender o que por enquanto é tentativa e o que realmente significa benefício.
Pior do pior: nos EUA, o número de advogados que vive à custa de processos de má prática é crescente, fazendo com que médicos exerçam a medicina defensiva, ou seja, peçam todos os exames imagináveis e indiquem procedimentos não tão bem indicados assim.
Essas ocorrências fizeram com que as empresas seguradoras, grandes pagadoras das despesas médicas, começassem a se preocupar com os preços.
Os empresários da medicina perceberam que a administração dos custos é complicada. Num mercado comum, o preço do serviço ou bem desejado é o elemento de controle. Se ele for muito caro, menos o querem. Na medicina, quem ordena a despesa, o médico, não é quem paga. Quem recebe o serviço, o paciente, também não o remunera imediatamente quando tem convênio ou seguro-saúde. Isso dá um incentivo perverso a ambas as partes para gastar o máximo, sem racionalidade.
Aí inventaram o "managed care", que coloca o médico, que ordena a despesa, cobrindo o risco dela. Nesse sistema, o médico recebe quantia fixa por pessoa segurada no processo, use ou não ela a assistência. Se ela não utilizar nada, ótimo, pois o lucro é todo do conjunto de profissionais. Caso contrário, o custo sai do ganho do plano. Se o médico pedir exames, encaminhar o paciente a especialistas ou precisar indicar procedimentos, isso vai sair do seu bolso. Nesse sistema, voltamos a ter o clínico-geral como o coordenador central do atendimento.
O "managed care", na sua parte positiva, investe em medicina preventiva, enfatizando vacinações, mudanças de hábitos, sugerindo que os seus segurados tenham dietas satisfatórias e façam exercício (tudo para evitar doenças).
A parte negativa é mais ou menos óbvia. Corresponde à tentação de não gastar, de não mandar para o especialista e de negar recursos. Aliás, já existem muitas reclamações contra o "managed care" nos EUA. Recente artigo publicado no "New England Journal of Medicine" menciona a irritação de um médico, por acaso um infectologista, como nós, com problemas irritantes para um especialista. Ele se queixa de ter que dar alta à meia-noite para o seguro pagar a internação, de não poder internar seu paciente com Aids antes que consiga a bênção do clínico que funciona como "gate keeper" do sistema, de não poder recorrer ao laboratório de sua confiança, tendo que usar o da organização.
Em que ficamos? O "managed care" conteve os custos nos EUA, o que é inegável. Ela pode funcionar, como os sistemas em geral, bem ou mal, na dependência de quem opera o plano. Provavelmente não é uma solução global boa e provavelmente precisa de envolvimento estatal. Em vez de nos preocupar tanto com o "managed care", deveríamos exigir que nosso Sistema Único de Saúde (SUS) funcionasse bem. Assim, o mercado para a tal novidade seria muito pequeno.

Vicente Amato Neto, 70, infectologista, é professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Jacyr Pasternak, 58, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.



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