São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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A porta-bandeira e o mestre-sala

PAULO RABELLO DE CASTRO

O ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, seria algo assim como um "mestre-sala" da nossa Constituição Federal se valesse, com todo o respeito, naturalmente, uma metáfora carnavalesca sobre o Brasil e os poderes instituídos da República. E ela mesma, a Constituição brasileira de 1988, seria, então, a porta-bandeira de nossa escola de samba, a rainha do nosso Carnaval, a síntese do nosso enredo, aquela que não se troca nem é substituída senão a intervalos muito pouco freqüentes.
Quando o mestre-sala vem de anunciar que sua rainha está mesmo é precisando de uma boa lipoaspiração, ninguém poderá duvidar do seu privilegiado julgamento a respeito da nossa primeira-dama, já que é o próprio quem segura a mão da moça e pode avaliar melhor que qualquer outro se ela aparenta excesso de peso na pista do Sambódromo.
Tal excesso constitucional sugere a lipoaspiração aqui e ali, principalmente à volta da cintura, onde ficam os capítulos tributário e -por que não?- também o financeiro, que tornam quadrada a evolução da nossa bailarina maior.
Mas vai que essa lipoaspiração acabe sendo feita numa clínica "day care" e, de complicações imprevistas, venha resultar um estado de coma com todas as seqüelas mais terríveis. Talvez, quem sabe, não fosse tão boa a idéia de uma lipoaspiração tributária "light".
Verdade seja dita, nossa porta-bandeira tem tido desempenho sofrível a cada Carnaval, desde que foi promulgada. É a falta de condicionamento físico generalizado. O peso da Constituição não reflete apenas uma desatualidade em relação às mutações do universo tributário mundial. Antes fosse só isso o que faz franzir o pesaroso cenho de nosso juiz maior.
Apesar das quase 44 emendas já introduzidas ao longo dos seus 15 anos de vigência e de outras tantas à espera de votação no Congresso, além de mais não-sei-quantas leis complementares na fila para regulamentá-la, não obstante a lamentável e malograda revisão singular a ela aplicada em 1993, a Constituição continua tão mal ajambrada que nem seu mestre-sala se encabula ao pedir a internação da moça.
A corajosa sugestão do presidente do STF introduz não só o objetivo da "desconstitucionalização" (palavra complicada!) de certos temas, como nos remete, na pioneira proposta do mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, à chamada Constituinte Revisora!
Sim, porque não basta lipoaspirar gorduras e excessos daqui e dali. É o texto inteiro que não cabe mais no Brasil do futuro, daquele país que pretendíamos fazer crescer 5% ao ano, fazer respeitar a cidadania política e social de todos, avantajar as oportunidades econômicas para milhões, acelerar a integração continental e, assim, projetar nossa nação entre os exemplos do século 21.


Não podemos continuar sendo a nação que exporta seus filhos para morrerem desidratados na fronteira entre o México e os EUA

Os brasileiros com capacidade de pensar e decidir -os adultos deste país- têm uma obrigação com as gerações que percorrerão o espaço deste século neste território. Não podemos continuar sendo a nação que exporta seus filhos para morrerem desidratados na fronteira desértica entre o México e os EUA, na tentativa de lá "arriscarem uma oportunidade" de trabalho que aqui lhes foi suprimida pela cristalizada burocracia, pelo descontrole dos entes estatais, pelo peso da dívida interna, pelo acúmulo dos direitos constitucionais incumpríveis porém sagrados, pela corrosiva aliança entre os que votam a Constituição em nome de todos e os privilégios da minoria agraciada pelos mimos do Estado pré-falimentar.
Não é de lipoaspiração que a grande dama carece. Ela precisa ser salva do coma por um recondicionamento físico completo, com direito a RPG, pilates, dieta balanceada e terapia anticompulsiva. É de uma profunda revisão constitucional que carecemos.
Como prosseguir, por exemplo, com as estioladas leis trabalhistas apensas ao texto constitucional? Mais brasileiros e brasileiras estarão tentando virar americanos ilegais mesmo sob o risco de morrerem de sede na travessia do deserto... E o que dizer do peso da máquina do Estado, grande embarcação encalhada pela multiplicação das carreiras públicas intocáveis, dos direitos inamovíveis e das vantagens "imexíveis"? Quem a tudo financia é o chicote tributário das contribuições ditas sociais, cuja multiplicação indiscriminada, sempre acolitada pela desculpa da assistência aos carentes, guarda relação direta com a perda de vitalidade do crescimento, a partir dos anos 80, inaugurando a era do grande desemprego aberto no país.
Porém nada na atual Constituição se compara ao casuísmo previdenciário a ela pendurado pelas regras esdrúxulas dos regimes geral e próprios, em que impossíveis direitos são erguidos à condição de cláusulas escritas em pedra, justamente no campo mais sujeito à imprevidência do Estado, que não só não poupa o que deveria verter em benefícios de aposentadoria no futuro, como faz pior: enterra as gerações futuras com uma administração temerária de juros sobre juros, sobre seu imenso passivo mobiliário.
Quer saber? A essa altura, antes de pensar em plástica da porta-bandeira, a arquibancada do Brasil bem que poderia começar a protestar ao mestre-sala e ao presidente da escola por uma troca de samba-enredo.

Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, na seção "Opinião Econômica", do caderno Dinheiro.



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