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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve-se permitir o aborto de feto anencéfelo?
NÃO
O direito de nascer
MASSIMO VARI
Sabe-se que o Supremo Tribunal
Federal em breve enfrentará dramática questão relacionada ao requerimento de uma mãe para se utilizar do
aborto a fim de eliminar o concebido
dotado da grave doença denominada
anencefalia. A propósito, registre-se
que, por efeito de uma decisão provisória, garantiu-se que a mãe abortasse, o
que induz, evidentemente, a grande
perplexidade.
De plano, observe-se que à primeira
vista essa poderia parecer justificada,
por certo impulsionada por fatores
emocionais, advindos de casos dramáticos como o de que se trata. Não se pode,
contudo, ignorar princípios que, em um
balanceamento de valores, indubitavelmente delicado, devam-se considerar.
O primeiro, e em particular o mais
fundamental, de todos os princípios é o
que se refere à vida do ser humano. Na
verdade, o direito à vida é o primeiro
dos direitos do homem. Trata-se de um
direito inalienável para o desenvolvimento de todo o povo livre e soberano:
"O direito dos direitos, a liberdade das
liberdades", como observa Antonio
Baldassare, presidente emérito da Corte
Constitucional italiana. A propósito,
gostaria de recordar as palavras de Norberto Bobbio, quando afirmava que "o
direito do concebido apenas poderia ser
satisfeito permitindo-se o seu nascimento". Tal direito, naturalmente, deve
ser reconhecido, também, aos homens e
nascituros doentes.
O direito à esperada vida, portanto,
tem sua base na concepção. Atacar esse
princípio traz conseqüências muito negativas para o conjunto da sociedade.
Isso já sabiam os romanos, tanto que há
mais de 20 séculos o concebido ("conceptus o qui in utero est"), ou o embrião, gozava de uma ampla proteção
por parte dos juristas romanos (prudentes), os quais anteviam o direito baseando-se em princípios (além das técnicas), enquanto hoje os "legisladores"
e juízes inserem sufocadamente as
questões tecnológicas e, muitas vezes,
perdem de vista os princípios e o sistema. No título V do livro I do "Digesto",
sob a rubrica de "statu hominum" (a
condição dos homens), encontram-se
passagens que resguardam o concebido
e fixam alguns princípios quanto à sua
proteção. No mesmo título de "statu hominum" encontram-se passagens que
dizem respeito ao nascimento de
"monstra" ou "prodigium", os quais,
portanto, eram considerados homens.
O princípio da tutela do concebido
também é elemento essencial da milenária tradição do direito comum. Esse
princípio é sintetizado pelo brocardo
medieval "conceptus pro iam nato habetur si de eius commodo agitur" (o
concebido considera-se já nascido
quando for em seu proveito).
Assim, como já se disse no início, o caso em discussão apresenta-se com características tais que, à primeira vista,
justificariam a autorização pretendida,
mas ela esbarra no direito. Com todo o
respeito às decisões dos tribunais, em
particular da Suprema Corte brasileira,
conhecendo-se bem o grande valor dos
juízes que a compõem, permito-me, todavia, formular algumas reflexões.
Antes de tudo, a não-aplicação dos
princípios supramencionados não significaria que a algumas pessoas ou a alguns doentes não seriam reconhecidos
os mesmos direitos das pessoas sãs? Como ficaria o caso das pessoas portadoras de deficiências psíquicas? Ser-lhes-ia
negado o direito de personalidade?
Mesmo que estejamos todos de acordo que a grave patologia que, no caso
em destaque, aflige o concebido seguramente poder-lhe-ia ensejar uma morte
rápida após seu nascimento, não se
ofenderia de modo grave o princípio da
igualdade e o da solidariedade, cuja afirmação conduziu nos últimos tempos,
não só na Europa, mas em todo o mundo, ao reconhecimento dos direitos sociais em proveito das categorias de pessoas menos favorecidas? Além disso,
conceder uma autorização como essa
não seria um precedente que abre uma
perigosa estrada, que, gradativamente,
poderia amanhã legitimar práticas de
eugenesia ou seleção de raças?
Se, porventura, negar-se a qualidade
de pessoa a quem não possua cérebro,
mesmo que possa vir à luz e viver por
pouco tempo, terminar-se-ia a admitir
que tal qualidade possa ser negada também a pessoas que, possuindo cérebro,
são afetadas por doenças graves; e nesse
caminho poder-se-ia chegar a negar tal
qualidade a pessoas que não possuam
determinados requisitos considerados
indispensáveis segundo a cultura dominante em dada época. Quem vem da
Europa sabe bem que o velho continente é assediado pelo materialismo e individualismo, que, perdendo de vista os
princípios de valores universais, levou à
adoção de legislações extremamente
permissivas em matéria de aborto, de
fecundação assistida ou de eutanásia.
O princípio da tutela à vida ou do reconhecimento da personalidade ao
concebido vem, contudo, sendo seguido por diversos códigos civis, ainda que
se distanciem do ponto de vista geográfico ou vista ideológico. Os sistemas da
América Latina, que também derivam
do grande sistema romanístico, inspiram-se no princípio de que o concebido
é pessoa, e isso representa (comparando-se com a Europa) um farol iluminado de civilização. Uma reflexão, que parece boa, é que tal luz não deve jamais
enfraquecer-se ou, menos, apagar-se.
Massimo Vari é vice-presidente emérito da Corte Constitucional italiana.
Tradução de Carlos Fernando Mathias.
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