São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve-se permitir o aborto de feto anencéfelo?

NÃO

O direito de nascer

MASSIMO VARI

Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal em breve enfrentará dramática questão relacionada ao requerimento de uma mãe para se utilizar do aborto a fim de eliminar o concebido dotado da grave doença denominada anencefalia. A propósito, registre-se que, por efeito de uma decisão provisória, garantiu-se que a mãe abortasse, o que induz, evidentemente, a grande perplexidade.
De plano, observe-se que à primeira vista essa poderia parecer justificada, por certo impulsionada por fatores emocionais, advindos de casos dramáticos como o de que se trata. Não se pode, contudo, ignorar princípios que, em um balanceamento de valores, indubitavelmente delicado, devam-se considerar.
O primeiro, e em particular o mais fundamental, de todos os princípios é o que se refere à vida do ser humano. Na verdade, o direito à vida é o primeiro dos direitos do homem. Trata-se de um direito inalienável para o desenvolvimento de todo o povo livre e soberano: "O direito dos direitos, a liberdade das liberdades", como observa Antonio Baldassare, presidente emérito da Corte Constitucional italiana. A propósito, gostaria de recordar as palavras de Norberto Bobbio, quando afirmava que "o direito do concebido apenas poderia ser satisfeito permitindo-se o seu nascimento". Tal direito, naturalmente, deve ser reconhecido, também, aos homens e nascituros doentes.
O direito à esperada vida, portanto, tem sua base na concepção. Atacar esse princípio traz conseqüências muito negativas para o conjunto da sociedade. Isso já sabiam os romanos, tanto que há mais de 20 séculos o concebido ("conceptus o qui in utero est"), ou o embrião, gozava de uma ampla proteção por parte dos juristas romanos (prudentes), os quais anteviam o direito baseando-se em princípios (além das técnicas), enquanto hoje os "legisladores" e juízes inserem sufocadamente as questões tecnológicas e, muitas vezes, perdem de vista os princípios e o sistema. No título V do livro I do "Digesto", sob a rubrica de "statu hominum" (a condição dos homens), encontram-se passagens que resguardam o concebido e fixam alguns princípios quanto à sua proteção. No mesmo título de "statu hominum" encontram-se passagens que dizem respeito ao nascimento de "monstra" ou "prodigium", os quais, portanto, eram considerados homens.
O princípio da tutela do concebido também é elemento essencial da milenária tradição do direito comum. Esse princípio é sintetizado pelo brocardo medieval "conceptus pro iam nato habetur si de eius commodo agitur" (o concebido considera-se já nascido quando for em seu proveito).
Assim, como já se disse no início, o caso em discussão apresenta-se com características tais que, à primeira vista, justificariam a autorização pretendida, mas ela esbarra no direito. Com todo o respeito às decisões dos tribunais, em particular da Suprema Corte brasileira, conhecendo-se bem o grande valor dos juízes que a compõem, permito-me, todavia, formular algumas reflexões.
Antes de tudo, a não-aplicação dos princípios supramencionados não significaria que a algumas pessoas ou a alguns doentes não seriam reconhecidos os mesmos direitos das pessoas sãs? Como ficaria o caso das pessoas portadoras de deficiências psíquicas? Ser-lhes-ia negado o direito de personalidade?
Mesmo que estejamos todos de acordo que a grave patologia que, no caso em destaque, aflige o concebido seguramente poder-lhe-ia ensejar uma morte rápida após seu nascimento, não se ofenderia de modo grave o princípio da igualdade e o da solidariedade, cuja afirmação conduziu nos últimos tempos, não só na Europa, mas em todo o mundo, ao reconhecimento dos direitos sociais em proveito das categorias de pessoas menos favorecidas? Além disso, conceder uma autorização como essa não seria um precedente que abre uma perigosa estrada, que, gradativamente, poderia amanhã legitimar práticas de eugenesia ou seleção de raças?
Se, porventura, negar-se a qualidade de pessoa a quem não possua cérebro, mesmo que possa vir à luz e viver por pouco tempo, terminar-se-ia a admitir que tal qualidade possa ser negada também a pessoas que, possuindo cérebro, são afetadas por doenças graves; e nesse caminho poder-se-ia chegar a negar tal qualidade a pessoas que não possuam determinados requisitos considerados indispensáveis segundo a cultura dominante em dada época. Quem vem da Europa sabe bem que o velho continente é assediado pelo materialismo e individualismo, que, perdendo de vista os princípios de valores universais, levou à adoção de legislações extremamente permissivas em matéria de aborto, de fecundação assistida ou de eutanásia.
O princípio da tutela à vida ou do reconhecimento da personalidade ao concebido vem, contudo, sendo seguido por diversos códigos civis, ainda que se distanciem do ponto de vista geográfico ou vista ideológico. Os sistemas da América Latina, que também derivam do grande sistema romanístico, inspiram-se no princípio de que o concebido é pessoa, e isso representa (comparando-se com a Europa) um farol iluminado de civilização. Uma reflexão, que parece boa, é que tal luz não deve jamais enfraquecer-se ou, menos, apagar-se.


Massimo Vari é vice-presidente emérito da Corte Constitucional italiana. Tradução de Carlos Fernando Mathias.


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