São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve-se permitir o aborto de feto anencéfelo?

SIM

O STF e a anomalia fetal grave: justiça

SILVIA PIMENTEL e THOMAZ RAFAEL GOLLOP

Em decisão histórica, o STF autorizou, por liminar concedida em julho, a interrupção da gravidez em caso de anencefalia do feto, em ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, com o apoio técnico e institucional da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
Anencefalia consiste em malformação congênita, caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo e da caixa craniana. Há 25 anos a medicina brasileira dispõe de métodos para estudar a saúde e a viabilidade fetal com alta precisão.
Pelo art.128 do Código Penal, de 1940, não se pune o aborto apenas quando praticado por médico para salvar a vida da gestante e na hipótese de estupro. O caso em questão não se encontra explicitamente aí contemplado, e uma interpretação estrita e literal do texto legal impediria a interrupção da gravidez, em hipótese de patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina.
O pedido principal que consta na ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, a ser julgada proximamente, é no sentido de que o STF declare inconstitucional a interpretação dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, como impeditivos de interrupção da gravidez em casos de anencefalia, diagnosticada por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante a se submeter a tal procedimento. Isso porque faltaria à hipótese legal o suporte fático e valorativo exigido pelo tipo penal "aborto": a potencialidade de vida extra-uterina.
A inédita decisão do STF, nas palavras da brilhante constitucionalista Flavia Piovesan, "celebra a prevalência dos valores da dignidade humana, da liberdade, da autonomia e da saúde, em absoluta consonância com os parâmetros constitucionais e internacionais acolhidos pelo Brasil. Caberá à mulher, na qualidade de pleno sujeito de direitos, a partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto ao procedimento médico a ser adotado, o que não apenas assegura o seu direito fundamental à dignidade, mas permite a apropriada atuação dos profissionais de saúde".
Importa resgatar um pouco de história, pois esta poderá inspirar o plenário do Supremo ao julgar o caso definitivamente confirmando a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello. Há uma década, em decisão inédita em nosso Estado, o Poder Judiciário paulista autorizou interrupção de gravidez de feto anencefálico. Já contávamos com duas decisões anteriores semelhantes em outros Estados.
Ao enfrentar tão grave lacuna legal, o Judiciário demonstrou coragem, ousadia e solidariedade. Cumpriu o princípio fundamental do art.1º de nossa Constituição, respeitando a "dignidade da pessoa humana". Ao assegurar liberdade de prosseguir ou interromper a gravidez nessa hipótese, cumpriu também o preceito constitucional do art. 5º, inciso I, não submetendo a tratamento cruel, desumano e degradante, equiparável à tortura. Aplicou o ordenamento jurídico brasileiro, com eqüidade, de forma a responder necessidade social emergente. Soube avançar, inovando construtivamente. Cumpriu as normas e princípios internacionais acolhidos pelo país. Realizou justiça.
Hoje, subestimando, temos mais de 3.000 alvarás concedidos nos mais diversos Estados do país. Nem todos esses alvarás de autorização são relativos à anencefalia. Alguns deles referem-se, por exemplo, à agenesia renal bilateral (ausência dos dois rins), o que também inviabiliza a vida do feto ao nascer.
Importa enfatizar, inclusive, que a recente decisão do Conselho Regional de Medicina autorizando a doação de órgãos de fetos anencéfalos reconhece implicitamente a ausência de vida encefálica dos mesmos. Tratar-se-ia, então, de uma situação semelhante à doação de órgãos autorizada após a constatação de morte encefálica de qualquer pessoa.
O desacordo entre o direito formalizado e as exigências de eqüidade se faz mais visível quando há um desenvolvimento social sem que a legislação vá ajustando suas normas às novas condições. O Poder Judiciário brasileiro vem buscando superar esse desacordo, advindo dos avanços da área da medicina fetal. Como bem assinalou a ilustre procuradora federal dos Direitos do Cidadão, dra. Ela Wiecko, em votação da matéria que ocorreu no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o reconhecimento dos direitos humanos não pode estar condicionado à edição de lei.
Cabe ao STF o desafio de consolidar esses precedentes históricos emancipatórios, que simbolizam o triunfo da dignidade humana e dos direitos humanos das mulheres, no marco de um Estado laico, pluralista e democrático.


Silvia Pimentel, 64, professora doutora de filosofia do direito da PUC-SP, é membro eleita para o Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, da ONU. Thomaz Rafael Gollop, 57, professor livre-docente em genética médica pela USP, é diretor do Instituto de Medicina Fetal de São Paulo.


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