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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve-se permitir o aborto de feto anencéfelo?
SIM
O STF e a anomalia fetal grave: justiça
SILVIA PIMENTEL e THOMAZ RAFAEL GOLLOP
Em decisão histórica, o STF autorizou, por liminar concedida em julho, a interrupção da gravidez em caso
de anencefalia do feto, em ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, com o apoio técnico e institucional da Anis (Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
Anencefalia consiste em malformação
congênita, caracterizada pela falta total
ou parcial do encéfalo e da caixa craniana. Há 25 anos a medicina brasileira dispõe de métodos para estudar a saúde e a
viabilidade fetal com alta precisão.
Pelo art.128 do Código Penal, de 1940,
não se pune o aborto apenas quando
praticado por médico para salvar a vida
da gestante e na hipótese de estupro. O
caso em questão não se encontra explicitamente aí contemplado, e uma interpretação estrita e literal do texto legal
impediria a interrupção da gravidez, em
hipótese de patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina.
O pedido principal que consta na ação
de argüição de descumprimento de preceito fundamental, a ser julgada proximamente, é no sentido de que o STF declare inconstitucional a interpretação
dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, como impeditivos de interrupção da gravidez em casos de anencefalia, diagnosticada por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante a se submeter a tal procedimento. Isso porque faltaria à hipótese
legal o suporte fático e valorativo exigido pelo tipo penal "aborto": a potencialidade de vida extra-uterina.
A inédita decisão do STF, nas palavras
da brilhante constitucionalista Flavia
Piovesan, "celebra a prevalência dos valores da dignidade humana, da liberdade, da autonomia e da saúde, em absoluta consonância com os parâmetros
constitucionais e internacionais acolhidos pelo Brasil. Caberá à mulher, na
qualidade de pleno sujeito de direitos, a
partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha
quanto ao procedimento médico a ser
adotado, o que não apenas assegura o
seu direito fundamental à dignidade,
mas permite a apropriada atuação dos
profissionais de saúde".
Importa resgatar um pouco de história, pois esta poderá inspirar o plenário
do Supremo ao julgar o caso definitivamente confirmando a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello. Há uma década, em decisão inédita
em nosso Estado, o Poder Judiciário
paulista autorizou interrupção de gravidez de feto anencefálico. Já contávamos
com duas decisões anteriores semelhantes em outros Estados.
Ao enfrentar tão grave lacuna legal, o
Judiciário demonstrou coragem, ousadia e solidariedade. Cumpriu o princípio fundamental do art.1º de nossa
Constituição, respeitando a "dignidade
da pessoa humana". Ao assegurar liberdade de prosseguir ou interromper a
gravidez nessa hipótese, cumpriu também o preceito constitucional do art. 5º,
inciso I, não submetendo a tratamento
cruel, desumano e degradante, equiparável à tortura. Aplicou o ordenamento
jurídico brasileiro, com eqüidade, de
forma a responder necessidade social
emergente. Soube avançar, inovando
construtivamente. Cumpriu as normas
e princípios internacionais acolhidos
pelo país. Realizou justiça.
Hoje, subestimando, temos mais de
3.000 alvarás concedidos nos mais diversos Estados do país. Nem todos esses
alvarás de autorização são relativos à
anencefalia. Alguns deles referem-se,
por exemplo, à agenesia renal bilateral
(ausência dos dois rins), o que também
inviabiliza a vida do feto ao nascer.
Importa enfatizar, inclusive, que a recente decisão do Conselho Regional de
Medicina autorizando a doação de órgãos de fetos anencéfalos reconhece implicitamente a ausência de vida encefálica dos mesmos. Tratar-se-ia, então, de
uma situação semelhante à doação de
órgãos autorizada após a constatação de
morte encefálica de qualquer pessoa.
O desacordo entre o direito formalizado e as exigências de eqüidade se faz
mais visível quando há um desenvolvimento social sem que a legislação vá
ajustando suas normas às novas condições. O Poder Judiciário brasileiro vem
buscando superar esse desacordo, advindo dos avanços da área da medicina
fetal. Como bem assinalou a ilustre procuradora federal dos Direitos do Cidadão, dra. Ela Wiecko, em votação da
matéria que ocorreu no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana, o reconhecimento dos direitos humanos não pode estar condicionado à edição de lei.
Cabe ao STF o desafio de consolidar
esses precedentes históricos emancipatórios, que simbolizam o triunfo da dignidade humana e dos direitos humanos
das mulheres, no marco de um Estado
laico, pluralista e democrático.
Silvia Pimentel, 64, professora doutora de filosofia do direito da PUC-SP, é membro eleita para
o Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação
Contra a Mulher, da ONU. Thomaz Rafael Gollop, 57, professor livre-docente em genética
médica pela USP, é diretor do Instituto de Medicina Fetal de São Paulo.
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