São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Evandro Lins e Silva

FÁBIO KONDER COMPARATO

Agora que ele deixa a cena definitivamente, após desempenhar um longo papel no drama da vida, imagino dois atores que se levantam para comentar a personalidade do grande ausente. Um deles é professor, o outro estudante.
O professor reafirma seu velho juízo de que a qualidade central da personalidade de Evandro sempre foi a compaixão ativa. E explica: não é apenas um sentir ou sofrer com outrem ("cum passio"). Trata-se, antes, daquela disposição de agir e tomar decisões, que Aristóteles denominava "héxis" e são Tomás "habitus". Evandro nunca foi um espectador no teatro da vida, mas sim um ator, por vocação e decisão.
Já se disse mil vezes que nós, brasileiros, somos compassivos, pois compartilhamos espontaneamente os sofrimentos alheios. Essa é uma meia verdade, adverte o professor. Os indivíduos das classes altas (a famosa elite de que falam os sociólogos) podem ter pena dos males que afligem os seus parentes e amigos, estendendo essa compaixão aos homens e mulheres de sua classe social. Mas eles são absolutamente insensíveis às desgraças dos pobres, de cuja existência só sabem por estatísticas, e ficam indignados quando se mostra que a tragédia dos miseráveis é em grande parte obra deles, os ricos.
Mas, mesmo entre os pobres, que se comovem facilmente com as tragédias dos outros, ainda quando elas atingem os "beati possidentes", esse sentimento de comiseração raramente suscita o empenho prático de resolver os problemas que estão na origem do sofrimento alheio. Ficamos todos satisfeitos em geral, diz o professor, da nossa comunhão de sentimentos com os sofredores, aquele "fellow-feeling" que Adam Smith pôs como fundamento de toda a ética. Mas daí a descambar para o egoísmo esclarecido da teoria capitalista -cada qual cuide racionalmente do seu interesse e todos serão felizes- vai uma curta e fatal distância, como mostrou a história.
Na pessoa de Evandro Lins e Silva, a compaixão com os que sofrem, em lugar de se limitar a bons sentimentos, traduziu-se sempre, imediatamente, num programa de solidariedade ativa: com o réu no processo-crime, com os cidadãos destituídos de poder na sociedade política.
O advogado que defendeu sem honorários e, portanto, com subida honra (pois honorários vem de "honor") mais de um milhar de presos políticos durante a ditadura Vargas foi também, coerentemente, um militante do socialismo durante mais de 70 anos. Pois sempre pareceu intolerável a esse médico da justiça limitar-se a cuidar dos doentes, sem tentar eliminar as doenças.
Foi por isso que não hesitou em apoiar, desde a primeira hora, o governo do presidente João Goulart, e permaneceu fiel aos velhos ideais do socialismo democrático, mesmo depois que a coalização empresarial-militar, com as bênçãos de importante setor do clero católico e o apoio logístico norte-americano, apossou-se do poder em Brasília, em 1964. E foi também por isso que o regime da caserna, incapaz de dobrar a altivez de Evandro, então ministro do Supremo Tribunal Federal, determinou a sua aposentadoria compulsória quatro anos depois.


Na pessoa de Lins e Silva, a compaixão com os que sofrem traduziu-se sempre num programa de solidariedade ativa


Não foi, assim, surpresa para ninguém que esse homem, consagrado unanimemente como o maior advogado de júri de sua época, tenha aceito com entusiasmo juvenil, aos 80 anos de idade, um mandato simbólico do povo brasileiro para defendê-lo contra os abusos praticados pelo indecoroso Collor de Mello.
O professor mal concluía, assim, a sua exposição, quando o jovem estudante se levantou, um pouco intimidado diante da platéia, mas com o fogo sagrado a arder nos olhos. Tudo isso é verdade, disse ele. O professor compôs um retrato fiel dessa grande personalidade que acaba de nos deixar. Mas, como em todo retrato, falta a terceira dimensão, aquela perspectiva em profundidade que dá vida à figura retratada.
O que ficará para sempre na minha memória e na de todos os que a ele recorreram nos dias de aflição, disse o jovem, é aquele olhar sereno com que ouvia o relato de nossas misérias, para concluir afinal, com carinhosa convicção: "Não se preocupe, meu filho, vamos encontrar uma solução". Falava sempre na primeira pessoa do plural, como se estivesse metido conosco nas mesmas encrencas.
Quero lembrar ainda, acrescentou o estudante, o que ele sempre dizia de si, com meia ironia, a respeito do juízo final: "Quando eu morrer, pedirei ao Juiz Eterno, logo na abertura do processo, que me conceda meia hora para a defesa prévia. Acho que obterei a absolvição".
Qual não deve ter sido a sua surpresa, concluiu o jovem, quando, logo na entrada do tribunal, o Senhor adiantou-se para recebê-lo e, em de vez de lhe indicar o banco dos réus, conduziu-o de imediato à tribuna dos advogados, dizendo: "Não temos tempo a perder, doutor Evandro. Cá estão todos os seus antigos clientes, aguardando julgamento". E, tomando assento na presidência do júri celeste, abriu desde logo a sessão e declarou solene: "A defesa tem a palavra!".

Fábio Konder Comparato, 66, jurista, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. É autor de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (ed. Saraiva), entre outras obras.


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