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TENDÊNCIAS/DEBATES
Evandro Lins e Silva
FÁBIO KONDER COMPARATO
Agora que ele deixa a cena definitivamente, após desempenhar um
longo papel no drama da vida, imagino
dois atores que se levantam para comentar a personalidade do grande ausente. Um deles é professor, o outro estudante.
O professor reafirma seu velho juízo
de que a qualidade central da personalidade de Evandro sempre foi a compaixão ativa. E explica: não é apenas um
sentir ou sofrer com outrem ("cum passio"). Trata-se, antes, daquela disposição de agir e tomar decisões, que Aristóteles denominava "héxis" e são Tomás
"habitus". Evandro nunca foi um espectador no teatro da vida, mas sim um
ator, por vocação e decisão.
Já se disse mil vezes que nós, brasileiros, somos compassivos, pois compartilhamos espontaneamente os sofrimentos alheios. Essa é uma meia verdade,
adverte o professor. Os indivíduos das
classes altas (a famosa elite de que falam
os sociólogos) podem ter pena dos males que afligem os seus parentes e amigos, estendendo essa compaixão aos
homens e mulheres de sua classe social.
Mas eles são absolutamente insensíveis
às desgraças dos pobres, de cuja existência só sabem por estatísticas, e ficam indignados quando se mostra que a tragédia dos miseráveis é em grande parte
obra deles, os ricos.
Mas, mesmo entre os pobres, que se
comovem facilmente com as tragédias
dos outros, ainda quando elas atingem
os "beati possidentes", esse sentimento
de comiseração raramente suscita o empenho prático de resolver os problemas
que estão na origem do sofrimento
alheio. Ficamos todos satisfeitos em geral, diz o professor, da nossa comunhão
de sentimentos com os sofredores,
aquele "fellow-feeling" que Adam
Smith pôs como fundamento de toda a
ética. Mas daí a descambar para o egoísmo esclarecido da teoria capitalista
-cada qual cuide racionalmente do
seu interesse e todos serão felizes- vai
uma curta e fatal distância, como mostrou a história.
Na pessoa de Evandro Lins e Silva, a
compaixão com os que sofrem, em lugar de se limitar a bons sentimentos,
traduziu-se sempre, imediatamente,
num programa de solidariedade ativa:
com o réu no processo-crime, com os
cidadãos destituídos de poder na sociedade política.
O advogado que defendeu sem honorários e, portanto, com subida honra
(pois honorários vem de "honor") mais
de um milhar de presos políticos durante a ditadura Vargas foi também, coerentemente, um militante do socialismo
durante mais de 70 anos. Pois sempre
pareceu intolerável a esse médico da
justiça limitar-se a cuidar dos doentes,
sem tentar eliminar as doenças.
Foi por isso que não hesitou em
apoiar, desde a primeira hora, o governo do presidente João Goulart, e permaneceu fiel aos velhos ideais do socialismo democrático, mesmo depois que a
coalização empresarial-militar, com as
bênçãos de importante setor do clero
católico e o apoio logístico norte-americano, apossou-se do poder em Brasília,
em 1964. E foi também por isso que o regime da caserna, incapaz de dobrar a altivez de Evandro, então ministro do Supremo Tribunal Federal, determinou a
sua aposentadoria compulsória quatro
anos depois.
Na pessoa de Lins e Silva, a compaixão com os que sofrem traduziu-se sempre num programa de solidariedade ativa
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Não foi, assim, surpresa para ninguém que esse homem, consagrado
unanimemente como o maior advogado de júri de sua época, tenha aceito
com entusiasmo juvenil, aos 80 anos de
idade, um mandato simbólico do povo
brasileiro para defendê-lo contra os
abusos praticados pelo indecoroso Collor de Mello.
O professor mal concluía, assim, a sua
exposição, quando o jovem estudante se
levantou, um pouco intimidado diante
da platéia, mas com o fogo sagrado a arder nos olhos. Tudo isso é verdade, disse
ele. O professor compôs um retrato fiel
dessa grande personalidade que acaba
de nos deixar. Mas, como em todo retrato, falta a terceira dimensão, aquela
perspectiva em profundidade que dá vida à figura retratada.
O que ficará para sempre na minha
memória e na de todos os que a ele recorreram nos dias de aflição, disse o jovem, é aquele olhar sereno com que ouvia o relato de nossas misérias, para
concluir afinal, com carinhosa convicção: "Não se preocupe, meu filho, vamos encontrar uma solução". Falava
sempre na primeira pessoa do plural,
como se estivesse metido conosco nas
mesmas encrencas.
Quero lembrar ainda, acrescentou o
estudante, o que ele sempre dizia de si,
com meia ironia, a respeito do juízo final: "Quando eu morrer, pedirei ao Juiz
Eterno, logo na abertura do processo,
que me conceda meia hora para a defesa
prévia. Acho que obterei a absolvição".
Qual não deve ter sido a sua surpresa,
concluiu o jovem, quando, logo na entrada do tribunal, o Senhor adiantou-se
para recebê-lo e, em de vez de lhe indicar o banco dos réus, conduziu-o de
imediato à tribuna dos advogados, dizendo: "Não temos tempo a perder,
doutor Evandro. Cá estão todos os seus
antigos clientes, aguardando julgamento". E, tomando assento na presidência
do júri celeste, abriu desde logo a sessão
e declarou solene: "A defesa tem a palavra!".
Fábio Konder Comparato, 66, jurista, doutor
pela Universidade de Paris, é professor titular da
Faculdade de Direito da USP e doutor honoris
causa da Universidade de Coimbra. É autor de "A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (ed.
Saraiva), entre outras obras.
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