UOL




São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS E DEBATES

Mínimos de civilidade

ALDAÍZA SPOSATI

Instalar condições para chegarmos a uma sociedade inclusiva é uma tarefa de múltiplos desafios e exige imensa coragem de governos e da sociedade. De um lado, é preciso a ousadia para tornar pública a dimensão das exclusões a enfrentar e, de outro, é preciso praticar, com todas as dificuldades inerentes, os caminhos de sua superação.
São Paulo é mais uma vez exemplo dessas duas dimensões. Como Los Angeles, Tóquio, Nova York e Paris, entre outras grandes metrópoles, São Paulo enfrenta o desafio de identificar e contar todos os que nela vivem, pois eles são em maior número do que os domiciliados, contados e estimados pelo censo do IBGE. Falo do desafio de construir metodologias para identificar uma população "nômade", isto é, composta por aqueles que perdem endereço, privacidade, saúde física e mental, autonomia e passam a viver nas ruas da cidade. A população da cidade aumentou e o número de excluídos também.
A cidade cresceu na década de 90 de forma desigual. Enquanto diminuíram em até 32% os habitantes do distrito do Pari, aumentaram em 211% os de Anhanguera e em 80% os de Cidade Tiradentes. Essa é uma das fortes razões pelas quais foi instalada, por exemplo, uma subprefeitura como a da Cidade Tiradentes ou os Ceus (Centros de Educação Unificados) nas áreas onde São Paulo se repovoa.


Cuidar de São Paulo significa incluir todos os que nela vivem sem nenhuma distinção ou discriminação


As metrópoles mundiais estimam em 1% de sua população total aqueles que vivem nas ruas. Aos 10.677.019 cidadãos estimados para 2003, é preciso acrescer 10.394 em situação de rua. Somos, portanto, 10.687.413 habitantes em São Paulo. Por certo essa não é uma boa notícia, mas é preciso ter a coragem de afirmar que cuidar de São Paulo significa incluir todos os que nela vivem sem nenhuma distinção ou discriminação. Essa é uma atitude civilizatória. O resultado do censo da população de rua contratado com a Fipe pela Prefeitura de São Paulo mostra novos sinais. Se, em 2000, das 8.706 pessoas em situação de rua, 58% viviam nas ruas, pois somente 42% tinham vagas em albergues, a situação se inverteu em 2003.
Cresceu o número de pessoas em situação de rua na cidade -hoje são 10.394, como já dito- , mas é menor o número dos que estão vivendo nas ruas. Aumentou a rede de serviços, a capacidade de acolhida e a reconstrução da autonomia. Mulheres, homens, doentes, catadores com carrinhos ou animais têm novas alternativas para reconstruir suas vidas e sua autonomia. Hoje, 60% frequentam a rede de proteção social mantida com financiamento público em parceria com a sociedade civil. Em três anos a prefeitura ampliou em 18% a inclusão social ou em 60% a oferta de vagas em albergues.
Para além da crise econômica, do desemprego, o esgarçamento de relações familiares e afetivas leva à solidão e ao abandono. O álcool, a droga, o jogo são as principais razões pelas quais mais de 400 cidadãos com nível universitário -advogados, médicos, jornalistas, entre outras tantas profissões exercidas- chegam a viver na rua. Essa rede não é todavia asilar ou assistencialista, mas sim o caminho de uma nova política de assistência social centrada no direito de cidadania, na autonomia e integrada a outras políticas municipais no campo da saúde, cultura, trabalho, educação e habitação.
Idosos ex-albergados são hoje agentes comunitários que cuidam de outros idosos moradores em área de risco; ex-moradores de rua recapacitados executam serviços de manutenção das instalações de albergues como o do Canindé; o Programa Ação Centro, em proposta de financiamento pelo BID, inclui o Projeto Oficina Boracea; moradias provisórias, locadas pela prefeitura, funcionam como repúblicas onde se auto-sustentam grupos de 10 a 15 ex-moradores de rua; repúblicas terapêuticas cuidam daqueles com problemas de saúde mental; comunidade agrícola na zona Sul restaura ex-drogaditos e alcoolistas e cria novas formas de convívio e autonomia.
Há ainda muito por fazer, mas São Paulo mostra que, com coragem, transparência e responsabilidade pública do governo da cidade e a presença da responsabilidade social da sociedade, é possível construir nova civilidade.

Aldaíza Sposati, 56, professora titular da Faculdade de Assistência Social da PUC-SP, é a secretária de Assistência Social da Prefeitura do Município de São Paulo.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS E DEBATES
Olavo de Carvalho: A grandeza de Josef Stálin

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.