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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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ANTÔNIO ERMÍRIO DE MORAES

A bomba do Vadão

O Vadão entrou no ginásio no ano em que eu estava terminando. Nosso convívio foi curto, mas intenso. Ele era beque (zagueiro) no time em que eu fazia o meio-campo. Usava e abusava do seu corpão. Fazia muitos pênaltis. Por pouca coisa, encrencava com o juiz, bandeirinhas, adversários e companheiros. Falava pelos cotovelos. Divertia o "respeitável público" que comparecia aos campeonatos escolares.
Apesar do seu jeitão agressivo no jogar e áspero no falar, o Vadão era presença certa em toda festa. Era sempre convidado. Quando não, ele entrava como penetra, dizendo-se primo do noivo, sobrinho do aniversariante, neto do sogro do vizinho... Mas, com seu estilo provocador, era louco para armar uma encrenca para, no meio do frege, tornar-se mediador.
Fiquei anos sem vê-lo. Quando comecei a assistir os treinos no campo do Corinthians, o isolamento acabou. Encontrava-o quase toda semana, sempre do mesmo jeito: elétrico, explosivo e engraçado. Sua paixão era xingar o juiz com vocábulos e frases cuja nobreza de estilo, por respeito ao leitor, não posso revelar.
Na época, fiquei sabendo que trancou a matrícula na segunda série. Foi ajudar um tio feirante, que tinha banca na região do Brás, Mooca e Belenzinho. Acabou fazendo a "universidade da vida". De ajudante de feira, saltou logo para dono de um pequeno açougue; depois para sócio de uma rede de padarias, e, na semana passada, telefonou-me para dizer que comprou uma frota de caminhões, colocando-os à minha disposição para transportar o que fabrico.
Marcamos um almoço. Foi um papo delicioso. Quer saber como ele está? O mesmo! Permanece franco, agressivo, provocador, direto, emotivo e adorável. Está entusiasmado com a idéia da bomba atômica. Foi taxativo: "Os países do Primeiro Mundo só vão nos respeitar quando o Brasil mostrar que é grande e está bem armado".
Argumentei que os possuidores de bombas nucleares têm mais problemas do que soluções. Seus povos não dormem em paz. O Brasil terá de mostrar ao mundo que é uma paragem de tranquilidade, habitada por gente que acredita mais no trabalho do que na guerra. Procurei explicar que até as usinas nucleares dão dor de cabeça. São caras para construir, perigosas para operar e difíceis de desativar.
De nada adiantou. Está com a cabeça feita. Além da bomba atômica, ele quer a pena de morte. Defende as duas com unhas e dentes.
Interessante... O Vadão é um desses homens que acredita na estratégia de usar a morte para garantir a vida. Não entendo esse raciocínio. Mesmo assim, gosto dele. É uma boa alma. Joga pesado na palavra, mas é manso no agir. Continua sendo o beque dos tempos do ginásio. Grandalhão, desengonçado e desbocado, ele sempre assustou pelo que dizia, mas nunca pelo que jogava. É o Vadão. Acho que não é o único. Ainda bem que seu poder se limita a uma frota de caminhões. Vou "entupi-lo" de trabalho para que esqueça da pena de morte e da bomba atômica!


Antônio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.


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