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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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Rua: espaço de diversidade e criação

MIRIAM CHNAIDERMAN


É assustador que um governo que vem da esperança na fratria transforme a rua em um sonho da burguesia


Durante dois anos, eu e minha equipe de realização de meu primeiro documentário, "Dizem que Sou Louco", de 1994, vagamos pelas ruas de São Paulo querendo saber quem seria aquele que a cidade nomeia como sendo o "louco de rua". Éramos um grupo de psicanalistas buscando a livre associação em nossas caminhadas. Não sabíamos nem sequer se poderíamos estabelecer qualquer diferença entre o chamado "louco de rua" e o mendigo, o morador de rua, aquele que perdeu os documentos, desempregado. Ou entre ele e o "bebum", que perambula depois de viver alguma louca paixão fracassada. Com nossa experiência, fomos vendo que há diferenças importantes -aquele que é visto como sendo "louco" anda solitário, não pede esmolas, produz suas vestimentas ou seu espaço próprio. E é discriminado pelos outros moradores de rua. Aprendemos que, na rua, há códigos de ética extremamente rígidos: os moradores constituem uma estrutura comunitária de fratria e solidariedade, algo tão raro no mundo atual. Há vários depoimentos de egressos da rua que nos falam da falta desse companheirismo solidário. Pudemos ir vendo como os chamados "psicóticos cronificados", que antes lotavam os tristes pátios dos hospitais psiquiátricos -que também contribuíam para a cronificação-, encontravam modos de se tratar a partir da rua: em entrevista que dei em uma das exibições do filme na TV, disse que "o barulho externo alivia do barulho interno". A rua tem quase a função de um neuroléptico, nome da medicação psiquiátrica usada para pessoas que estão delirando ou alucinando.
A partir dessa experiência, venho defendendo a rua como espaço de trabalho e propondo a criação de equipes de trabalho itinerantes que possam ajudar a população de rua a viver de modo mais digno. Armei, dentro de mim, o sonho de transformar o Minhocão em um grande espaço de trabalho, com oficinas de pintura, de costura, de jardinagem, de cozinhas públicas. Temos vários relatos de ex-cozinheiros, ex-agricultores, ex-professores e ex-jornalistas que se encontram na rua. Será que não poderiam utilizar sua experiência anterior no trabalho na rua? Várias são as tentativas de conseguir subempregos ou de internar em "hospital-dia", busca-se sempre alguma forma de institucionalizar essas figuras. No desrespeito ao nomadismo, essas tentativas fracassam. Parece que a rua é mais tentadora apesar de todos os riscos.
Fui apreendendo que somos nós que temos de mudar nossa concepção do que é a rua -no nosso mundo, a rua foi deixando de ser espaço público, espaço de encontro com o outro. Tememos o assalto, a violência, os sequestros. É um dado de nosso cotidiano, de uma sociedade movida pelo nosso empobrecimento, que se fez gritante nos últimos anos. Mas não me parece que a solução seja a eliminação do espaço público como espaço da diferença.
A burguesia carioca reclamou quando o metrô pôde levar a zona norte às areias de Copacabana. É claro -do alto de seus apartamentos luxuosos de frente para a avenida Atlântica, não gosta de saber que a miséria habita ali do lado. Nós, psicanalistas, chamamos isso de "recusa da realidade".
Agora, em São Paulo, a burguesia pode ficar exultante -vai poder esquecer a miséria e a diferença: estão colocando grades e pedregulhos em lugares onde moradores de rua costumam ficar. Como argumento, fala-se em mau cheiro e em ameaças de assalto na volta para casa. E a prefeitura defende-se ao afirmar que está encaminhando os "mendigos" para albergues. Mais um paliativo que só faz tornar a paisagem urbana mais palatável para aqueles que, supostamente, sabem o que é o "viver bem". Como se, no mundo em que vivemos, tivéssemos de homogeneizar formas de vida. Algo que já foi muito bem realizado em regimes totalitários tão recentes em nossa memória. É assustador que um governo que vem da esperança na fratria transforme a rua em um sonho da burguesia onde as diferenças são sumariamente eliminadas.

Miriam Chnaiderman é psicanalista, ensaísta e documentarista.


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