São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

JOSÉ MIGUEL VIVANCO e PAULO DE MESQUITA NETO

Será que nos enganamos?


No cumprimento do dever legal, os policiais brasileiros ainda têm autorização para fazer o que quiserem?

Será que nos enganamos em relação aos avanços da sociedade e do governo na consolidação do Estado de Direito e na proteção dos direitos humanos no Brasil?
Será que o Poder Judiciário não foi capaz de se manter em sintonia com a evolução do direito internacional desde a Segunda Guerra Mundial e as obrigações jurídicas assumidas pelo Brasil perante a comunidade internacional desde a transição para a democracia?
Será que ajudamos a enganar os policiais, promotores e juízes que se envolveram no processo de reforma e profissionalização de suas instituições, fazendo-os crer que respeitar e fazer respeitar os direitos humanos é a base mais sólida e o caminho mais seguro para reduzir a criminalidade e a injustiça no país?
Será que, no cumprimento do dever legal, os policiais brasileiros ainda têm autorização para fazer o que quiserem, desrespeitando leis nacionais e internacionais, normas organizacionais e procedimentos operacionais -maneira como poderia ser interpretada a decisão do Tribunal de Justiça no caso do massacre do Carandiru? Ora, não sabemos que, num Estado de Direito, a lei deve valer igualmente para todos os que cometem crimes -pobres e ricos, negros e brancos, bandidos e autoridades?
Entre as graves violações de direitos humanos no Brasil desde a transição para a democracia, o massacre do Carandiru, em 1992, foi certamente uma das mais graves e de maior repercussão nacional e internacional.
O Carandiru se tornou tema de livros e até um filme. Símbolo de uma política penitenciária imune aos princípios e normas básicas de direitos humanos, a Casa de Detenção onde aconteceu o massacre foi desativada e implodida, o mesmo acontecendo com outras prisões do complexo Carandiru. A área do complexo foi transformada num parque da Juventude. Fotografia da implosão foi primeira página na imprensa brasileira e hoje figura no site da Secretaria da Administração Penitenciária como um fato histórico em São Paulo.
Em várias visitas ao Carandiru e diversos contatos com as principais autoridades federais e estaduais, a Human Rights Watch recebeu informações segundo as quais os crimes praticados no massacre seriam investigados, e os responsáveis, processados e punidos, conforme recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Os fatos indicavam que o fim da impunidade não era só retórica governamental.
O Brasil ratificou tratados, assinou declarações, apresentou relatórios e participou dos mais importantes fóruns internacionais de direitos humanos. O governo federal se comprometeu com a implementação de programas de proteção e promoção dos direitos humanos elaborados com ampla participação da sociedade civil.
O Congresso Nacional aprovou -e o presidente da República sancionou- lei sobre o crime de tortura, lei transferindo para a Justiça comum a responsabilidade de julgar crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares no exercício da função e lei que permite transferir para a Justiça Federal a responsabilidade pelo julgamento de graves violações de direitos humanos.
Governos estaduais criaram ouvidorias de polícia e do sistema penitenciário. Policiais militares receberam do Comitê Internacional da Cruz Vermelha treinamento para uso da força, incorporaram o treinamento nos seus cursos de formação e se tornaram instrutores em cursos semelhantes em outros países.
Passados nove anos, em 2001, o coronel Ubiratan, responsável pelo comando da operação policial que resultou no massacre do Carandiru, foi julgado e condenado pelo Tribunal do Júri. Apesar de ter sido esta a única condenação e de todos os demais envolvidos ainda não terem sido julgados, parecia que as ações desenvolvidas pelo governo e pela sociedade produziam resultados e que a impunidade começava a ficar para trás.
Mas, agora, fomos surpreendidos pela decisão do Órgão Especial do TJ de São Paulo. Um dos mais importantes tribunais do país, contrariando o voto do relator e do revisor do processo, anulou a condenação do coronel Ubiratan pelo Tribunal do Júri e o absolveu dos crimes praticados no Carandiru.
Aceitou o argumento da defesa, de que o jurados responderam de forma contraditória às perguntas formuladas pela juíza e não votaram convencidos de que houve excesso doloso na ação policial; de que a juíza se equivocou ao interpretar as respostas dos jurados e proferir a sentença; e de que o coronel atuou no estrito cumprimento do dever legal. Praticamente garantiu a impunidade dos responsáveis pelos crimes acontecidos no massacre do Carandiru.
Passados quase 14 anos, ninguém foi responsabilizado pelos crimes cometidos no massacre do Carandiru.
Será muito difícil explicar às famílias das vítimas e à sociedade brasileira que a lei vale igualmente para todos, independentemente da sua riqueza, status ou poder, e ainda explicar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que o Brasil realiza esforços significativos para acabar com a impunidade se a impunidade prevalece num caso paradigmático como o Carandiru.


José Miguel Vivanco, 45, advogado, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA), é diretor-executivo para as Américas da Human Rights Watch, a maior organização internacional e não governamental de direitos humanos dos EUA.
Paulo de Mesquita Neto, 44, doutor em ciência política pela Universidade de Columbia (EUA), é representante da Human Rights Watch no Brasil.


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